Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 28 de janeiro de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Admoestação



O MEU RIMANCEIRO
.

Admoestação






Dói-me este tempo parado.

Caminhos sem caminheiros…

Que relógio abandonado

sem ter corda nem ponteiros!...



No movimento aparente,

desde a manhã ao sol pôr,

tece o sol incandescente

um manto de luz e cor.



As memórias soterradas

sangram nas papoilas rubras

que sonham desesperadas

o dia em que as redescubras.



A sono solto dormindo,

teimas em não dar por nada.

Nem sonhas o sonho lindo

que há em cada madrugada.



Nas noites de estio ardente,

cantam grilos ao luar

na sinfonia estridente

que em vão te quer despertar…



Mas como um justo tu dormes,

como se fossem tranquilos

estes escombros disformes

que desesperam os grilos.



O que é dos outros cobiças,

numa inveja envergonhada…

e, alheio ao que desperdiças,

acabas por não ter nada.



Tens as nozes do rifão,

p’ra parti-las não tens dentes…

Se és assim por condição,

assume-a e não te lamentes!





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 28 de Janeiro de 2018.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

05 - REFLEXÕES * A pressa


O Flávio passou agora mesmo por mim. Iluminou a face com um sorriso e lá foi pedalando. Já nem se apercebeu do meu aceno que era um cumprimento e um adeus. Esta gente anda sempre com pressa. Não sei se é a Vida que apressa esta gente, se é esta gente que apressa a Vida. Num contraponto indiferente, o dia continua a ter 24 horas. E tanto quanto posso observar, a natureza mantém o mesmo ritmo. A natureza onde os manobrismos humanos (ainda?) não interferem para acelerar, retardar, alterar, modificar o seu ancestral modo de ser e estar.

Lá mais à frente, a estrada se cruza com um ribeiro. O Flávio já deve ter passado a ponte. E quero crer que, com a pressa, nem olhou o leito deste pequeno curso de água.

É, com certeza, um ribeiro igual a tantos outros que serpenteiam a planura. Eu gosto muito de arroios, de ribeiros e ribeiras, de rios e de mar. É o fascínio da água. Este meu fascínio me leva a ficar horas e horas olhando este ou aquele curso de água, a tentar imaginar percursos evadidos, a criar exaltadas ousadias, a recusar destinos parados de prostração e renúncias. Ora foi num dia que nem sei precisar que vi estupefacto, neste mesmo ribeiro, uma represa canhestramente erguida. Estupefacto porque a represa não tinha a finalidade transitória de aproveitar água para rega. Olhando mais atentamente, percebi: o ribeiro, naquela área, atravessa uma propriedade rústica e a represa nada mais é do que um passadiço para um tractor agrícola. Com certeza, o passadiço poderia ter usado manilhas na estrutura para deixar a água livremente correr. Mas o autor do passadiço não pensou nisso ou não quis pensar. E em nome do utilitarismo estreito e de um inaplicável direito de propriedade, cortou uma linha de água que é um bem público.

E estas coisas e tantas outras existem e persistem anónimas por vontade de quem não vê, de quem não quer ver…

Eu sei, é a pressa… Mas serão seguramente os apressados da Vida, serão os distraídos da Vida, serão os indiferentes da Vida os primeiros a apontar o indicador acusador aos outros, aos tais outros que tinham o dever de ter visto e não viram; que tinham o dever de ter previsto e não previram; que tinham o dever de ter agido e não agiram…

O Flávio passará por aqui, no regresso, pela tardinha. Hoje já não o verei, está arrefecendo e eu tenho de resguardar a minha anciania.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 5 de Janeiro de 2018.