Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 30 de junho de 2019

17 - POEMÁRIO * Vento suão


CLAVE DE SUL 


Vento suão 





Vem o vento suão da fornalha de Hefesto, 

na Mãe África. Traz um rubor de artifícios 

e uma mescla de anéis de ancestrais malefícios 

que a bigorna forjou num desígnio funesto. 



Traz os gritos que a dor arrancou da raiz 

e morreram no mar do perpétuo desterro… 

Traz a cruz que de novo agoniza no cerro 

e calada, no horror sem perdão, tudo diz… 



Traz o medo do incréu num juízo final, 

onde o ser e o não-ser se debatem convulsos… 

Traz o verbo na luz sem grilhetas nos pulsos 

e a partilha do pão num sagrado ritual… 



E eu aqui neste chão que foi berço e regaço 

esperando por mim para o último abraço. 





José-Augusto de Carvalho 
29 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sábado, 22 de junho de 2019

17 - POEMÁRIO * Traço de união


TEMPO DE SORTILÉGIO 
.
Traço de união 





Escavo os subterrâneos da ausência 

em busca de vestígios e de escombros 

que jazem nos covais da decadência, 

ornados de mistérios e de assombros… 



Ossadas que me dizem ser o nada 

que resta do que foi vivido outrora… 

Memória sem memória, abandonada, 

e que nenhuma lágrima hoje chora… 



Escavo e não encontro nem um grito, 

um eco de algum ai aqui que diga 

eu sou de ti, ainda que proscrito, 

a génese perdida, a mais antiga… 



E não me deves nada, nem a prece 

que no recolhimento se murmura… 

Em ti, apenas, sou quem permanece, 

quem vai contigo, quem contigo dura… 



Agora que de mim não há mais nada, 

pára de procurar --- já tudo viste. 

E cumpre-te semente germinada, 

que tudo o que já foi em ti existe… 



Atónito, descubro que Sibila 

me trouxe a mítica revelação: 

que nem a morte que nos aniquila, 

destrói o nosso traço de união. 




José-Augusto de Carvalho 
19 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sábado, 15 de junho de 2019

17 -POEMÁRIO * Companheiro...


(CLAVE DE SUL)

*
Companheiro… 



(À memória de Joaquim Soeiro Pereira Gomes)



Tu sabias, 

sabias desde o berço, 

que o pátrio chão está por resgatar… 



Tu sabias, 

sabias da pertença 

da futura seara por ceifar… 



Tu sabias, 

sabias por que a fome 

maior é sempre a fome da esperança… 



Tua sabias, 

sabias que tão pouco iam durar 

teus tempos de criança… 



Tu sabias, 

sabias que eras mais um entre os tantos 

privados do seu tempo de meninos… 



Tu sabias, 

sabias como eu sei que vamos juntos 

contra as vivas marés dos desatinos… 



Tu sabias, 

sabias, como eu sei, 

que a gente cai e a gente se levanta… 



Tu sabias 

e sabes, como eu sei, 

que o canto da sereia não nos perde, 

não nos seduz, 

não nos encanta…. 





José-Augusto de Carvalho 
15 de Junho de 2019 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 13 de junho de 2019

18 - CAMINHEIROS * “Caos estrelado”, um livro de poemas



“Caos estrelado”, um livro de poemas 



José Carlos Dinardo. poeta brasileiro, ofereceu-me um exemplar do seu livro “Caos estrelado”. Sinto nesta oferta o imenso abraço unindo, mais uma vez, dois países e um idioma comum.

José Carlos Dinardo e eu devemos este relacionamento recente a José Arrabal, escritor brasileiro de créditos firmados, amigo de há muitos anos de fraternas andanças e cumplicidades éticas, estéticas e humanas.

Um livro de poemas não se lê… vai-se lendo e degustando, porque em cada leitura quase sempre se alarga e se aprofunda o mundo próprio do poeta. E esta nótula é importante para antecipadamente confirmar releituras.


2

Da primeira leitura de “Caos estrelado” permito-me salientar: o poeta se me apresenta como um observador do que vê, do que intui, do que sente, daqui partindo para desvendar e nos revelar emoções, interrogações, expectativas e perplexidades, mas também anseios e (in)certezas futuras.

No poema inaugural --- demolição, é casada a saudade do que se perdeu com a esperança do que se pode obter. Será, porventura, a recuperação de Lavoisier na celebrada máxima “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

No poema amanhecer, é intuída a antemanhã radiosa do milagre de nascer.

No poema “Rosa da segunda-feira”, o fim-de-semana anterior é lamentado como uma perda, como uma ilusão, como um falhanço. Se parece evidente a alusão ao mundo do trabalho, onde é comum se descansar ao fim de semana, fica difícil apreender o pensamento do poeta se este cantar, como eu entendi, aquele fim-de-semana como se fosse o último.

No poema “Aprendizado”, é cantado o elogio da metamorfose – “deixando casulos ocos, voarei borboleta.” Dito em linguagem chã, o esforço é premiado.

No poema “Matricial”, são ensaiadas combinações dos vocábulos mulher/poema/vivo; os vocábulos escolhidos e as diversas combinações encontradas demonstram como se encontra a sublimação na singeleza.

No poema “Eco da infância”, encontramos o petiz descobrindo a natureza e a sua frustração perante o avô que, voluntariamente alheado, deixa o neto descobrir e descobrir-se sozinho.


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Estou convicto de que a breve referência que fiz aos primeiros poemas do livro “Caos estrelado” será suficiente para despertar o interesse dos leitores. Se é verdade, e eu assumo que é, que nos outros nos descobrimos e logo os outros em nós se descobrem, ler “Caos estrelado” é uma possibilidade a ponderar. Aliás, ler é uma possibilidade a ponderar… sempre! Viver sem livros é que será uma impossibilidade e uma fatalidade.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo * Portugal
8 de Junho de 2019.