Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

06 - ROMANCEIRO * N' A jangada de pedra

Homenagem a José Saramago



N' «A jangada de pedra» partiste.
Tenebroso é o mar, nós sabemos,
mas, à vela ou à força de remos,
sempre chega quem nunca desiste.

«Levantados do chão», nós seremos
a certeza de nós que entreviste
mais além do «Mostrengo» que existe,
porque mais Cabos Não dobraremos.

Na memória dos nossos avós,
vem o sonho que apenas se faz
quando um homem tem pão e tem voz.

Chegaremos. E tu estarás,
sorridente, no meio de nós,
nesse cais de verdade e de paz.



José-Augusto de Carvalho
20 de Junho de 2010.
Viana*Évora*Portugal

terça-feira, 8 de junho de 2010

06 - ROMANCEIRO * A verdade de mim!


Bendito seja o meu nome!
Semeio e colho este pão,
mas só migalhas me dão,
enganando a minha fome.

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Arautos de feira exultam.
E com palavrinhas mansas
e falazes esperanças,
o meu dia a dia insultam.

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Quem me promete o que é meu,
como se fosse oferenda?
Quem supõe que estou à venda?
Quem é aqui mais do que eu?

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Da noite dos tempos venho,
vergado, chapéu na mão,
à deriva como um lenho
sem velame nem timão.

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Milénios já percorridos
de sofrimento e lições,
quando os terei aprendidos
por memória e por razões?

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Continuo um pé descalço,
um deserdado, a ralé,
a subir ao cadafalso
num qualquer auto de fé...

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Enredado em várias malhas
e presa dos maiores danos,
morro em todas as batalhas
só p'ra mudar de tiranos!

Zé-povinho assim me chama
quem de mim se não reclama!

Ah, que força, que arreganho
assim me tolhe a vontade
de me erguer e com verdade
ser livre e do meu tamanho?!

Até mudar de caminho,
serei sempre o Zé-povinho?



José-Augusto de Carvalho
Redigido em 21.03.1996
Corrigido em30.10.2009
Viana * Évora * Portugal

Nota: Este poema foi incluído no livro «Pátria Transtagana», editado em Outubro deste ano de 2014.

domingo, 6 de junho de 2010

10 - JORNAL DE PAREDE * Irã: quem atira a primeira pedra?

Texto de Frei Betto
02-Jun-2010


O presidente Lula empreendeu uma delicada operação diplomática para evitar que o Irã utilize a energia nuclear para fins bélicos. As nações mais poderosas do mundo, capitaneadas pelos EUA, logo expressaram sua indignação e discordância: como um "paiseco" como o Brasil ousa querer ditar regras na política internacional?
Marx, Reich e Erich Fromm já nos haviam prevenido que preconceito de classe costuma ser um tabu arraigado. Como alguém que nasceu na cozinha tem o direito de ocupar a sala de jantar?
Pelo critério de George Bush, lamentavelmente preservado por Obama, o Irã faz parte das nações que integram o "eixo do mal". Não morro de amores pela terra dos aiatolás, considero o governo iraniano uma autocracia fundamentalista e discordo do modo patriarcal que o Irã trata as suas mulheres, como seres de segunda classe. Diga-se de passagem, assim também faz o Vaticano, razão pela qual as mulheres são impedidas de acesso ao sacerdócio.
Mas não custa questionar o cinismo dos senhores do mundo com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU: por que Israel tem o direito de possuir arsenal nuclear e o Irã não? Ele jogaria uma bomba nuclear sobre outras nações? Ora, isso os EUA já fizeram, em 1945, sacrificando milhares de vidas inocentes em Hiroshima e Nagasaki.
O Irã desencadearia uma guerra mundial? Ora, o Ocidente civilizado já promoveu duas, a segunda vitimando 50 milhões de pessoas. O nazismo e o fascismo surgiram no Oriente? Todos sabemos: foram criação diabólica de dois países considerados altamente civilizados, Alemanha e Itália.
Os árabes, ao longo de 800 anos, ocuparam a Península Ibérica. Deixaram um lastro de cultura e arte. A Europa ocupou e saqueou a África e a Ásia, e o lastro é de miséria, mortandade e extorsão. O Irã é uma ditadura? Quantas não foram implantadas na América Latina pela Casa Branca? Inclusive a do Brasil, que durou 21 anos (1964-1985). Há pouco, a Casa Branca apoiou o golpe militar que derrubou o governo democrático de Honduras.
Fortalecido belicamente, o Irã poderia ocupar países vizinhos? E o que dizer da ocupação usamericana de Porto Rico, desde 1898, e agora do Iraque e do Afeganistão? E com que direito os EUA mantêm uma base naval, transformada em cárcere clandestino de supostos terroristas, em Guantánamo, território cubano?
Respaldado em que lei internacional os EUA implantaram 700 bases militares em países estrangeiros? Só na Itália existem 14. Na Colômbia, 5. E quantas bases militares estrangeiras há nos EUA?
Há que se admitir: o Irã não está preparado para se integrar ao seio das nações civilizadas... Nações que financiam, pelo consumo, os cartéis das drogas, tratam imigrantes estrangeiros como escória da humanidade, fazem do consumismo o ideal de vida.
E convém lembrar: fundamentalismo não é apenas uma síndrome religiosa. É, sobretudo, uma enfermidade ideológica, que nos induz a acreditar que o capitalismo é eterno, fora do mercado não há salvação e que a desigualdade social é tão natural quanto o inverno e o verão.
Lula candidato era discriminado pelo elitismo brasileiro por não dominar idiomas estrangeiros. Surpreendeu a todos por falar a linguagem dos pobres e revelar-se exímio negociador em questões internacionais.
Sem o apoio do Brasil não avançaria essa primavera democrática que, hoje, semeia esperança de tempos melhores em toda a América Latina. Os eleitores dão as costas às velhas oligarquias políticas e escolhem governantes progressistas.
Essa nova geopolítica latino-americana, que oficializará em 2011 a União das Nações Latino-Americanas e Caribenhas, certamente preocupa Washington. A crise financeira bate as portas das nações mais poderosas do mundo e a Europa entra num período de recessão. O livre mercado, o Estado mínimo, a moeda única (euro), a ciranda especulativa, mergulham numa crise sem precedentes.
Tudo indica que, daqui pra frente, o mundo será diferente. Se melhor ou pior, depende do resultado do embate entre duas forças contrárias: os que pensam a partir do próprio umbigo, interessados apenas em obter fortunas, e os que buscam um projeto alternativo de sociedade, menos desigual e mais humano. É a antiética em confronto com a ética.

Frei Betto é escritor, autor de "Calendário do Poder" (Rocco), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/
Cartaoberro