Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 22 de dezembro de 2019

17 - POEMÁRIO * O derradeiro mito

TEMPO DE SORTILÉGIO
*
O derradeiro mito


O Sol declina morno --- fim de tarde.
É tempo de vindimas --- cheira a mosto.
Há um rubor sagrado no teu rosto.
Teu corpo abandonado dá-se e arde.

Prosterno-me a teus pés e sou um círio
que um sacrifício de alma e luz consome.
Meus lábios balbuciam o teu nome
que dulcifica o fel do meu martírio...

Eu sei que vou morrer assim por ti.
Que dádiva dos deuses mereci
de em fumo me cumprir --- de ser o eleito!
 
Que importa agora quanto foi escrito?
Seremos nós o derradeiro mito...
...este princípio e fim mais que perfeito!
 

 
José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, Dezembro de 2019.

domingo, 20 de outubro de 2019

05 -REFLEXÕES * Falando de dores


NA PALAVRA É QUE VOU… 


Falando de dores 







Hoje, tentemos conjugar o verbo doer…

Qual será o significado do lamento: estou com uma dor de dentes difícil de suportar?

Afinal, uma dor de dentes é um problema que o Serviço Nacional de Saúde (mal)trata e de que a odontologia privada se ocupa se ou quando a disponibilidade do meu salário mo permite. Assim, tal qual – quem quer saúde, paga-a!

Evidentemente que a dor de dentes é um exemplo entre todas as outras dores que nos afligem ou nos podem afligir enquanto caminhamos nesta viagem finita em que vamos…

… vamos. muitos cantando e rindo;

… vamos, muitos encarando a viagem como uma via profana (via crucis reduzida à dízima);

… vamos, muitos sem darem por nada, numa acomodação mísera e mesquinha (e aqui te evoco, meu amado Luís, mais uma vez);

… vamos, outros ainda, mas poucos, muito poucos, esbracejando ou esbravejando;

--- vamos, uns tantos proclamando serem do contra porque é bonito ser contestatário ou porque lhes convém inocuamente lavarem a consciência…

.

Vejamos:

-- eu sei que pago os meus Impostos;

-- eu sei que sou, desde o velho Adão, obra do Criador, logo eu e todos os demais pertencemos à única Irmandade --- a Irmandade Humana;

-- eu sei que a Mãe Eva e o Pai Adão mal se comportaram cometendo o pecado da desobediência e, por isso mesmo, foram expulsos do Paraíso, passando eles depois as passas do Algarve e outras mais… e que no-las deixaram de herança até hoje, numa penitência de longevidade que me assombra; mas tudo bem, a misericórdia do Criador é infinita;

-- eu sei que a nossa Leonor, filha do Duque de Beja, depois rainha, após o casamento com o Príncipe Perfeito, o nosso Dom João II, Rei de Portugal de perene memória apesar das aleivosias de muitos, criou as Misericórdias, obra modesta e, avento eu, paroquialmente inspirada na misericórdia infinita;

-- eu sei que os Direitos Humanos dizem defender-me;

-- eu conheço a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948);

-- eu conheço os direitos constitucionais do cidadão português;

-- eu suponho saber ler, mas quanto mais leio, mais me parece que vivo um equívoco:

-- eu suponho saber escrever (cartas à família e pouco mais…), mas quanto mais escrevo menos leitores tenho; mas entendo isto: o silêncio mata, logo eu sei que me estão matando… E aqui eu sorrio divertido: não percam tempo querendo matar-me!… a Senhora Dona Morte (olá, Florbela, minha amada) não vai cometer a maldade de se esquecer de mim…

Até sempre!

*

José-Augusto de Carvalho

20 de Outubro de 2019.

Alentejo * Portugal

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

02 - POESIA VIVA * O lado obscuro da História

TEMPO DE SORTILÉGIO
.
O lado obscuro da História 





De soluços me chega, entrecortada, 

a saudade chorada que me cantas. 

Do desterro cruel a voz levantas, 

no silêncio da noite abandonada. 



Na memória do tempo, a melopeia 

é um raio de luz a consolar 

esta angústia sem prece nem altar 

que num auto-de-fé nos incendeia. 



São saudades de nós -- de ti, de mim… 

…quando, louco, o tapete que voava 

pelos ares infindos nos levava, 

sonhando as fantasias de Aladim! 



Personagens intemporais e avulsos, 

hoje, somos, nos livros infantis… 

Por que nenhum autor dos livros diz 

que nós do pátrio chão fomos expulsos? 



Do al-Andalus, de Sefarad fomos, 

em aras e desterro, os excluídos… 

Do silêncio a que fomos reduzidos, 

gritamos porque ainda vivos somos! 





José-Augusto de Carvalho 
25 de Setembro de 2019 

Alentejo * Portugal

quinta-feira, 4 de julho de 2019

18 - CAMINHEIROS * José Carlos Dinardo


Estimados Leitores deste meu espaço:

Prevenindo  a dificuldade de obtenção de exemplar(es) do livro "Caos estrelado" no mercado livreiro, aqui deixo um endereço que ultrapassará essa presumível dificuldade --- CAOS ESTRELADO

Esclareço que este espaço não é porta voz de interesses comerciais. Aqui, apenas manifesto a minha solidariedade para com um autor que recentemente publicou o seu primeiro livro.

Os meus cumprimentos.

José-Augusto de Carvalho
Alentejo * Portugal


18 - CAMINHEIROS * José Carlos Dinardo





ATENTADO AMORISTA

 Poema de José Carlos Dinardo


Vamos fazer um atentado amorista,

Antes que a vida parta para outro lugar.

Vamos esquecer nossas diferenças e ser um,

Mesmo que seja por momento singular.

Esqueça que você existe,

Deixe o Mundo existir em você.

Abraçar as pessoas,como se nossos filhos.

Beijar os rostos,como se nossos irmãos.

Não escolhamos tempo nem lugar,

Para a bomba do amor detonar.

Quantas mais pessoas presentes,

Quanto mais desprevenidas,

Melhor,melhor ...

Vamos fazer um atentado amorista,

Antes que a vida deixe de pulsar.

Vamos ouvir, antes de falar.

Aceitar, antes de entender.

Distribuir, antes de juntar.

Sorrir e fazer sorrir

E, sorrateiro, partir,

Deixando uma flor

Viva! dentro de um vaso,

Florindo como nosso amor.

domingo, 30 de junho de 2019

17 - POEMÁRIO * Vento suão


CLAVE DE SUL 


Vento suão 





Vem o vento suão da fornalha de Hefesto, 

na Mãe África. Traz um rubor de artifícios 

e uma mescla de anéis de ancestrais malefícios 

que a bigorna forjou num desígnio funesto. 



Traz os gritos que a dor arrancou da raiz 

e morreram no mar do perpétuo desterro… 

Traz a cruz que de novo agoniza no cerro 

e calada, no horror sem perdão, tudo diz… 



Traz o medo do incréu num juízo final, 

onde o ser e o não-ser se debatem convulsos… 

Traz o verbo na luz sem grilhetas nos pulsos 

e a partilha do pão num sagrado ritual… 



E eu aqui neste chão que foi berço e regaço 

esperando por mim para o último abraço. 





José-Augusto de Carvalho 
29 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sábado, 22 de junho de 2019

17 - POEMÁRIO * Traço de união


TEMPO DE SORTILÉGIO 
.
Traço de união 





Escavo os subterrâneos da ausência 

em busca de vestígios e de escombros 

que jazem nos covais da decadência, 

ornados de mistérios e de assombros… 



Ossadas que me dizem ser o nada 

que resta do que foi vivido outrora… 

Memória sem memória, abandonada, 

e que nenhuma lágrima hoje chora… 



Escavo e não encontro nem um grito, 

um eco de algum ai aqui que diga 

eu sou de ti, ainda que proscrito, 

a génese perdida, a mais antiga… 



E não me deves nada, nem a prece 

que no recolhimento se murmura… 

Em ti, apenas, sou quem permanece, 

quem vai contigo, quem contigo dura… 



Agora que de mim não há mais nada, 

pára de procurar --- já tudo viste. 

E cumpre-te semente germinada, 

que tudo o que já foi em ti existe… 



Atónito, descubro que Sibila 

me trouxe a mítica revelação: 

que nem a morte que nos aniquila, 

destrói o nosso traço de união. 




José-Augusto de Carvalho 
19 de Junho de 2019. 
Alentejo * Portugal

sábado, 15 de junho de 2019

17 -POEMÁRIO * Companheiro...


(CLAVE DE SUL)

*
Companheiro… 



(À memória de Joaquim Soeiro Pereira Gomes)



Tu sabias, 

sabias desde o berço, 

que o pátrio chão está por resgatar… 



Tu sabias, 

sabias da pertença 

da futura seara por ceifar… 



Tu sabias, 

sabias por que a fome 

maior é sempre a fome da esperança… 



Tua sabias, 

sabias que tão pouco iam durar 

teus tempos de criança… 



Tu sabias, 

sabias que eras mais um entre os tantos 

privados do seu tempo de meninos… 



Tu sabias, 

sabias como eu sei que vamos juntos 

contra as vivas marés dos desatinos… 



Tu sabias, 

sabias, como eu sei, 

que a gente cai e a gente se levanta… 



Tu sabias 

e sabes, como eu sei, 

que o canto da sereia não nos perde, 

não nos seduz, 

não nos encanta…. 





José-Augusto de Carvalho 
15 de Junho de 2019 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 13 de junho de 2019

18 - CAMINHEIROS * “Caos estrelado”, um livro de poemas



“Caos estrelado”, um livro de poemas 



José Carlos Dinardo. poeta brasileiro, ofereceu-me um exemplar do seu livro “Caos estrelado”. Sinto nesta oferta o imenso abraço unindo, mais uma vez, dois países e um idioma comum.

José Carlos Dinardo e eu devemos este relacionamento recente a José Arrabal, escritor brasileiro de créditos firmados, amigo de há muitos anos de fraternas andanças e cumplicidades éticas, estéticas e humanas.

Um livro de poemas não se lê… vai-se lendo e degustando, porque em cada leitura quase sempre se alarga e se aprofunda o mundo próprio do poeta. E esta nótula é importante para antecipadamente confirmar releituras.


2

Da primeira leitura de “Caos estrelado” permito-me salientar: o poeta se me apresenta como um observador do que vê, do que intui, do que sente, daqui partindo para desvendar e nos revelar emoções, interrogações, expectativas e perplexidades, mas também anseios e (in)certezas futuras.

No poema inaugural --- demolição, é casada a saudade do que se perdeu com a esperança do que se pode obter. Será, porventura, a recuperação de Lavoisier na celebrada máxima “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

No poema amanhecer, é intuída a antemanhã radiosa do milagre de nascer.

No poema “Rosa da segunda-feira”, o fim-de-semana anterior é lamentado como uma perda, como uma ilusão, como um falhanço. Se parece evidente a alusão ao mundo do trabalho, onde é comum se descansar ao fim de semana, fica difícil apreender o pensamento do poeta se este cantar, como eu entendi, aquele fim-de-semana como se fosse o último.

No poema “Aprendizado”, é cantado o elogio da metamorfose – “deixando casulos ocos, voarei borboleta.” Dito em linguagem chã, o esforço é premiado.

No poema “Matricial”, são ensaiadas combinações dos vocábulos mulher/poema/vivo; os vocábulos escolhidos e as diversas combinações encontradas demonstram como se encontra a sublimação na singeleza.

No poema “Eco da infância”, encontramos o petiz descobrindo a natureza e a sua frustração perante o avô que, voluntariamente alheado, deixa o neto descobrir e descobrir-se sozinho.


3

Estou convicto de que a breve referência que fiz aos primeiros poemas do livro “Caos estrelado” será suficiente para despertar o interesse dos leitores. Se é verdade, e eu assumo que é, que nos outros nos descobrimos e logo os outros em nós se descobrem, ler “Caos estrelado” é uma possibilidade a ponderar. Aliás, ler é uma possibilidade a ponderar… sempre! Viver sem livros é que será uma impossibilidade e uma fatalidade.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo * Portugal
8 de Junho de 2019.

domingo, 19 de maio de 2019

18 - CAMINHEIROS * José Carlos Dinardo


CAOS ESTRELADO é composto por 70 poemas, criados em épocas distintas e sem uma focalização temática, onde fica claro o fascínio em abordar os aspectos existenciais. A sequência em que os poemas são apresentados na obra é aleatória, tendo sido a definição da posição de cada poema na obra definida por sorteio, feito pelo autor. Esta opção decorreu da preocupação em não contar nenhuma estória com o sequenciamento dos poemas. Assemelha-se assim esta obra a um céu estrelado, com poemas-estrelas com vários brilhos e texturas, onde a montagem das constelações fica por conta do leitor.

Ficha Técnica
ISBN
9788530002695
Páginas
90
Edição número
1
Edição ano
2019

sexta-feira, 17 de maio de 2019

18 - CAMINHEIROS * José Carlos Dinardo


Estimados Leitores de vivo e desnudo:

A etiqueta agora criada -- caminheiros -- corresponde à decisão de divulgar autores que muito prezo.
Inicio esta divulgação com o poeta brasileiro José Carlos Dinardo.
Os meus cumprimentos.
José-Augusto de Carvalho




José Carlos Dinardo por ele mesmo:

Nasci no início da década de 50, em Rio Claro, no interior do Estado de São Paulo. Passei minha infância à beira de uma floresta de eucaliptos, onde brincava e sonhava; meu fascínio pela natureza e meu amor pelos animais decorrem deste cenário. 
O desejo de estudar foi natural e impetuoso. O de leitura foi herdado do meu Pai, voraz leitor de revistas. Neste clima de sonhos, busquei meu caminho, me especializando em Engenharia na área de telecomunicações. 
Descobri um esporte que pratico com regularidade: corridas de longa distância. 
Fã incondicional dos Beatles e de músicas eruditas, faço da poesia meu meio natural de expressão artística. 
Creio sempre ter sido poeta, mas comecei a escrever poemas no início da década de 80 e não pretendo parar jamais. 
Publiquei 13 poemas na 49ª. edição da Antologia Poética da Editora “Palavra é Arte”, em 2018. Em Abril de 2019, publiquei meu primeiro livro, com 70 poemas, “Caos Estrelado”, pela Editora Viseu. 
Gosto de declamar meus poemas em público e sentir suas reações.






BAILARINO


A luz violentou o palco.
Seu pranto gerou a música.
Surge o bailarino, num sobressalto.

Rodopios, gestos, firmezas.
Saltos no vazio perplexo.
Aplausos em busca de um coração.

Que Deus pagão te deu o espaço?

Quando a música cansou de te acompanhar,
Não foi possível saber, sequer imaginar.
Se eras a música, o espaço ou o tempo,
Ou se, divino, recriavas tudo no movimento.







terça-feira, 7 de maio de 2019

08 - CIDADANIA * A instante interrogação

NA PALAVRA É QUE VOU...
.
A instante interrogação





Para além dos múltiplos deveres e direitos do quotidiano, para além do convívio social dito civilizado do mesmo quotidiano, para além dos afectos, a nossa vida é a instante interrogação de nós mesmos e de tudo o que nos perturba e nos reduz ao desconforto ansioso do real que intuímos e à utopia que perseguimos.
Passamos pela existência de outrem e deixamos ou não memória de nós; passam pela nossa existência e deixam ou não memória da sua passagem. E quando a memória não é perene, poderemos ou não citar Lavoisier? Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma… (cito de cor).
Se, por um motivo ponderável ou não, nos ausentamos, o convívio social dito civilizado já referido sentiu a nossa ausência ou continua imperturbável? Será que, perante a nossa ausência, indiferente sentencia só fazem falta os que estão?
Certa vez, uma pessoa me falava incomodada de alguém que experimentava o outro. Experimentava na acepção de testar, sublinho. Confesso que fiquei surpreendido e ainda hoje assim continuo. Não tenho a pretensão de molestar quem pensa diferente, mas vejamos:
1- Como me parece adequado, comecemos pelo "princípio". Sim, princípio em itálico. Tenho por certo que pouco ou nada sabemos do Princípio e pouco ou nada saberemos do Fim. Aqui vamos neste nosso tempo fazendo os possíveis e sonhando os impossíveis para chegarmos inteiros ao fim da efémera jornada. Ora bem, o mito do Eden é claro: Deus testou ou experimentou Adão e Eva com o fruto proibido. E, que me conste, ninguém molesta Deus por isso.
2- Quando o outro é testado numa prova qualquer, também ninguém ergue a voz protestando.
3- Quando sondamos o outro no sentido de sabermos se contamos ou não com ele para um objectivo qualquer, estamos testando a sua (in)disponibilidade.
4- Quando criamos uma expectativa do outro, alguns indícios dele conhecemos ou supomos conhecer e esses indícios pressupõem um teste indirecto.
Afinal, qual de nós não testa o outro?
Colocado quanto antecede, a conclusão parece evidente: a nossa existência é uma interrogação permanente de nós mesmos perante o outro porque só no outro poderemos encontrar-nos ou não e assim nos cumprirmos ou não.


José-Augusto de Carvalho.
Alentejo* Portugal

quinta-feira, 21 de março de 2019

09 - IN MEMORIAM * Os Borges

TÃO LONGE E TÃO PERTO!
*
E se mais mundo houvera lá chegara (Luís de Camões)



Jorge Luís Borges


Los Borges


Nada o muy poco sé de mis mayores 
portugueses, los Borges: vaga gente 
que prosigue en mi carne, oscuramente, 
sus hábitos, rigores y temores.

Tenues como si nunca hubieran sido 
y ajenos a los trámites del arte, 
indescifrablemente forman parte 
del tiempo, de la tierra y del olvido.

Mejor así. Cumplida la faena, 
son Portugal, son la famosa gente 
que forzó las murallas del Oriente

y se dio al mar y al otro mar de arena. 
Son el rey que en el místico desierto 
se perdió y el que jura que no ha muerto.


*
Os Borges

Nada ou pouco sei dos meus ancestrais
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que na minha carne, obscuramente,
Prossegue seus hábitos, temores e rituais.

Ténues como se nunca houvessem existido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente fazem parte
Do tempo, da terra e do que é esquecido.

Melhor assim. Cumprida a odisseia,
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E se deu ao mar e a outro mar de areia.

São o rei que no místico deserto
Se perdeu mas jura estar perto.


(tradução de José Mário Silva)

terça-feira, 19 de março de 2019

08 . CIDADANIA * Saudade

NA PALAVRA É QUE VOU...
.

S a u d a d e 



É um dia abrasador de Julho. O quintal ganha os contornos duma fornalha. Ao fundo, corre a rua empinada. São duas horas da tarde. Sonolenta, a vila estiraçada ao sol. Nem viv’alma. As cigarras cantam, ensurdecendo tudo e todos, esquecidas ou ignorantes da fábula. 

Maria sai da cozinha com um alguidar de roupa lavada. Com a destreza da experiência dos anos, começa a dependurá-la na corda que atravessa o quintal de topo a topo. Com este calor, daqui a nada estará seca, murmura de si para si. 

Soa a aldraba do portão que dá para a rua empinada. Maria grita lá vou… e vai abrir o portão. É a filha que chega de Évora, vem afogueada e protesta: 

--- Que calor, mãe! Passa dos quarenta graus! E a camioneta da carreira é uma frigideira! 

Maria encolhe os ombros resignada e corrobora o protesto: 

--- Este maldito verão é sempre assim, filha! O expresso para Lisboa tem ar condicionado, mas as carreiras, aqui na zona, são esta vergonha… O povo não merece mais! 

D’Airinhas é uma estampa de rapariga. Andará pelos dezoito anos. Sorri para a mãe e repreende-a com doçura: 

--- Oh, mãe, lá vem a política outra vez! 

Maria enfrenta a filha com severidade: 

--- Maria d’Aires, a tua mãe sabe o que é a vida! Tu é que não sabes nem terás idade bastante para saber! Habitua-te a ouvir os mais velhos, os que já viveram muitos anos! As pessoas da minha idade e as mais velhas sabem muito bem como é esta dança dos políticos, sempre prometendo, sempre arranjando desculpas para não cumprirem o que prometem… São uns mentirosos! 

D’Airinhas abraça ternamente a mãe e sossega-a: 

--- As coisas irão melhorar. Vivemos em democracia. A revolução pôs um ponto final nos tempos negros da ditadura. 

Maria meneou a cabeça negativamente, com tristeza. 

--- Filha, a revolução foi um sonho. Essa coisa de o povo é quem mais ordena era boa de mais para ser verdade! Os cravos murcharam e secaram -- são uma saudade, nada mais. 


José-Augusto de Carvalho 
5 de Julho de 2005. 
Alentejo * Portugal 

quarta-feira, 6 de março de 2019

08- CIDADANIA * A árvore


NA PALAVRA É QUE VOU…
.
A árvore 



Na minha adolescência, sobressaía um companheiro pela irreverência: “eu sou bom aluno, aprendo logo à primeira”. Recordando-o agora, assalta-me esta dúvida: talvez eu seja retardado, daí que tivesse de esperar dezena e meia de anos para finalmente perceber que Fernando Pessoa estava errado quando escreveu “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ou, sem me diminuir assim tanto, talvez eu tenha acreditado, enfrentando e afrontando as intempéries, que o tempo tudo conserta ou tudo concerta… vá lá eu saber!...
Decorridas dezena e meia de anos, verifico que o tempo nada consertou ou concertou. Agora, estarei onde o velho Sócrates “quis” que eu sempre estivesse quando proclamou “eu só sei que nada sei”.
Não me arrependo de ter dado tempo ao tempo… Só que eu não posso competir com o velho Cronos. Ele é perene, eu sou efémero. Ele aí está pujante, eu aqui estou gasto de anos e minguado de horizonte.
“Até ao lavar dos cestos é vindima”, diz a sabedoria popular neste meu chão de fome e de pão, de sede e de vinho, de mar e de voltar ou não. Ah, mas creio nos saberes ancestrais! E lavados os cestos que me couberam na labuta, dou por finda a minha participação na vindima. 
A realidade de mim foi o que foi. Não posso voltar atrás para corrigir seja o que seja e não tenho motivo ponderável para protestar agora. Tenho ou suponho ter consciência dos meus limites. E é com a mesma inteireza com que ontem aceitei o desafio que decido hoje optar pela gruta do eremita, no deserto do meu recolhimento. Levo comigo as verdades de sempre, para meu conforto. 
Ajudei a plantar a árvore… Benditos sejam os que se deliciarem comendo os saborosos frutos! 


4 de Março de 2019.
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O Fado

ESTA LIRA DE MIM!...

*

O Fado





Cumprida a rotação,

marcava mais um dia o calendário.

E sempre este fadário

de versos na tristeza da canção. 



É noite, agora? Ou dia? Quem o sabe?

Dolentes guitarradas

gemem desesperadas

no tempo do silêncio que lhes cabe. 



A voz se solta rouca e chora o canto

fatal do sofrimento,

enquanto o xaile negro, em negro manto,

enluta o desespero do lamento. 



E assim, no desencontro da existência,

monótona se cumpre a rotação,

sofrida no fadário da cadência

que marca o calendário da canção. 





José-Augusto de Carvalho
6 de Março de 2009.
Viana * Évora * Portugal


sábado, 26 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O encontro


TEMPO DE SORTILÉGIO

*

O encontro 



Este texto, agora terminado, corresponde a uma promessa incumprida 
que fiz a Lizete Abrahão, em Porto Alegre, na primavera de 2002. 
Que me valha o conforto de a Lizete ter lido grande parte dele. 





No silêncio, adormece o sossego. 

O deserto parece assombrado. 

O meu branco albornoz aconchego 

e caminho no tempo parado. 



É de pedras o solo que piso. 

Pedras soltas, dispersas, vadias… 

Uma sombra, e tão mal a diviso, 

me garante que não há vigias. 



Nem sinal de uma entrada na gruta. 

É enorme o lendário rochedo! 

Meu olhar, sob a noite, perscruta. 

Sinto o frio suado do medo. 



Frente a frente, o Passado e o Presente. 

Balbucio as palavras da senha 

e, ante mim, a surgir, de repente, 

a verdade que a lenda desenha. 



Devagar, passo a passo, franqueio 

o portal que se abriu por encanto. 

Circunvago o olhar, sem receio, 

e respiro um Passado de espanto. 



Das pegadas de Ali nem vestígio. 

Das riquezas da lenda nem rastro. 

Entre o ser e o não-ser, o litígio 

da firmeza do vento e do mastro. 



E contrárias as forças serão 

das firmezas do mastro e do vento, 

quando a vela se enfuna evasão 

e nas ondas se vai movimento? 



E se falo de mar, o Simbad, 

da penumbra do tempo lendário, 

vem velar, nos jardins de Bagdad, 

o estertor do ladrão sanguinário. 



Mas eu quero bem junto de mim, 

neste transe de angústia e de espera, 

a lanterna que foi de Aladim, 

inventando no caos a quimera. 



Lá do fundo da gruta, o ruído 

se aproxima de uns passos seguros… 

Não é sonho, é alguém decidido 

que regressa aos instantes futuros. 



Aproxima-se um velho de mim. 

Traz nas mãos a lanterna apagada. 

Reconheço o lendário Aladim 

no seu rosto de barba nevada. 



Com um gesto me manda sentar 

nas areias ocultas da gruta. 

Só um raio de níveo luar 

nos observa em silêncio de escuta. 



Quando o velho me fala, estremeço: 

--- Alá seja contigo, meu filho! 

Do Passado que sou reconheço, 

no Presente que fores, o trilho. 



Quando intento a resposta, num gesto 

me remete ao silêncio. Obedeço. 

E prossegue num claro requesto 

de uma angústia em que me reconheço: 





--- Na magia sem tempo da vida, 

são um só o Passado e o Presente. 

Somos ambos, na espera sofrida, 

o caminho de nós, livremente. 



O murmúrio do Tigre se expande 

pelas terras do Fértil Crescente. 

E não há quem o cale ou lhe mande 

suspender ou mudar a corrente. 



Nestas terras de sonhos e lendas, 

sob um céu polvilhado de estrelas, 

há milénios que erguemos as tendas 

na ilusão de senti-las e tê-las. 



Neste berço nasceu Abrahão, 

que foi pai de Ismael e de Isaque… 

Novas hordas de hodierna agressão 

nos flagelam em bárbaro ataque. 



É o Inferno de portas abertas. 

Jorra o sangue na fúria ululante, 

desenhando as auroras incertas 

neste céu cada vez mais distante. 



Talvez seja a sentença já vista 

do martírio em Sodoma e Gomorra: 

p’ra que a vida na graça persista 

é preciso que a mácula morra! 



Sem palavras, no tempo medito: 

no que fomos, no quanto sonhámos… 

E pergunto-me, incrédulo e aflito: 

onde foi que nós todos errámos? 



Aladim, em silêncio, se afasta. 

Lá vai ele, lanterna na mão. 

Só, na dúvida que me desgasta, 

sinto a dor que devasta o meu chão. 




José-Augusto de Carvalho 
Porto Alegre, Primavera de 2002 
Alentejo, Janeiro de 2019.

sábado, 19 de janeiro de 2019

02 - POESIA VIVA * Memória do tempo parado


CANTO REVELADO 


Memória do tempo parado 









Para os Capitães que sonharam e continuam a sonhar Abril 





E tanto por dizer ficou estrangulado 

nas malhas do silêncio azul e da clausura! 

Do risco de falar ao de ficar calado, 

medrava em cada olhar o esgar duma censura. 



Era o tempo parado 

dos altares pagãos 

onde foi imolado 

por atávicas mãos 

o devir revelado. 



Difusa, em cada esquina, a sombra desenhava, 

na mancha que sangrava as pedras da calçada, 

o desvario insone e plúmbeo procurava 

a brisa que trazia a nova perfumada. 



Era o tempo parado 

dos desígnios fatais 

dum fantasma danado 

a negar os sinais 

do devir revelado. 



Ah, meu amigo, e tu, nos longes por haver, 

ainda do silêncio infausto tão distante, 

vivias, no mistério, a sedução de ser 

um astro mais do céu a lucilar errante. 



Era o tempo parado 

da vergonha de nós 

no estertor resignado 

e no medo sem voz, 

a render-se calado. 



Chegaste, agora, são e salvo, e o tempo é teu! 

Bem-vindo sejas! Vem, no tempo que em ti cresce, 

ser mais um cravo-Abril, que o dia amanheceu, 

e deixa-te orvalhar de auroras e floresce! 



José-Augusto de Carvalho 
19 de Maio de 2009. 
Alentejo * Portugal