Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

sábado, 26 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O encontro


TEMPO DE SORTILÉGIO

*

O encontro 



Este texto, agora terminado, corresponde a uma promessa incumprida 
que fiz a Lizete Abrahão, em Porto Alegre, na primavera de 2002. 
Que me valha o conforto de a Lizete ter lido grande parte dele. 





No silêncio, adormece o sossego. 

O deserto parece assombrado. 

O meu branco albornoz aconchego 

e caminho no tempo parado. 



É de pedras o solo que piso. 

Pedras soltas, dispersas, vadias… 

Uma sombra, e tão mal a diviso, 

me garante que não há vigias. 



Nem sinal de uma entrada na gruta. 

É enorme o lendário rochedo! 

Meu olhar, sob a noite, perscruta. 

Sinto o frio suado do medo. 



Frente a frente, o Passado e o Presente. 

Balbucio as palavras da senha 

e, ante mim, a surgir, de repente, 

a verdade que a lenda desenha. 



Devagar, passo a passo, franqueio 

o portal que se abriu por encanto. 

Circunvago o olhar, sem receio, 

e respiro um Passado de espanto. 



Das pegadas de Ali nem vestígio. 

Das riquezas da lenda nem rastro. 

Entre o ser e o não-ser, o litígio 

da firmeza do vento e do mastro. 



E contrárias as forças serão 

das firmezas do mastro e do vento, 

quando a vela se enfuna evasão 

e nas ondas se vai movimento? 



E se falo de mar, o Simbad, 

da penumbra do tempo lendário, 

vem velar, nos jardins de Bagdad, 

o estertor do ladrão sanguinário. 



Mas eu quero bem junto de mim, 

neste transe de angústia e de espera, 

a lanterna que foi de Aladim, 

inventando no caos a quimera. 



Lá do fundo da gruta, o ruído 

se aproxima de uns passos seguros… 

Não é sonho, é alguém decidido 

que regressa aos instantes futuros. 



Aproxima-se um velho de mim. 

Traz nas mãos a lanterna apagada. 

Reconheço o lendário Aladim 

no seu rosto de barba nevada. 



Com um gesto me manda sentar 

nas areias ocultas da gruta. 

Só um raio de níveo luar 

nos observa em silêncio de escuta. 



Quando o velho me fala, estremeço: 

--- Alá seja contigo, meu filho! 

Do Passado que sou reconheço, 

no Presente que fores, o trilho. 



Quando intento a resposta, num gesto 

me remete ao silêncio. Obedeço. 

E prossegue num claro requesto 

de uma angústia em que me reconheço: 





--- Na magia sem tempo da vida, 

são um só o Passado e o Presente. 

Somos ambos, na espera sofrida, 

o caminho de nós, livremente. 



O murmúrio do Tigre se expande 

pelas terras do Fértil Crescente. 

E não há quem o cale ou lhe mande 

suspender ou mudar a corrente. 



Nestas terras de sonhos e lendas, 

sob um céu polvilhado de estrelas, 

há milénios que erguemos as tendas 

na ilusão de senti-las e tê-las. 



Neste berço nasceu Abrahão, 

que foi pai de Ismael e de Isaque… 

Novas hordas de hodierna agressão 

nos flagelam em bárbaro ataque. 



É o Inferno de portas abertas. 

Jorra o sangue na fúria ululante, 

desenhando as auroras incertas 

neste céu cada vez mais distante. 



Talvez seja a sentença já vista 

do martírio em Sodoma e Gomorra: 

p’ra que a vida na graça persista 

é preciso que a mácula morra! 



Sem palavras, no tempo medito: 

no que fomos, no quanto sonhámos… 

E pergunto-me, incrédulo e aflito: 

onde foi que nós todos errámos? 



Aladim, em silêncio, se afasta. 

Lá vai ele, lanterna na mão. 

Só, na dúvida que me desgasta, 

sinto a dor que devasta o meu chão. 




José-Augusto de Carvalho 
Porto Alegre, Primavera de 2002 
Alentejo, Janeiro de 2019.

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