TEMPO DE SORTILÉGIO
*
O encontro
Este texto, agora terminado, corresponde a uma promessa incumprida
que fiz a Lizete Abrahão, em Porto Alegre, na primavera de 2002.
Que me valha o conforto de a Lizete ter lido grande parte dele.
No silêncio, adormece o sossego.
O deserto parece assombrado.
O meu branco albornoz aconchego
e caminho no tempo parado.
É de pedras o solo que piso.
Pedras soltas, dispersas, vadias…
Uma sombra, e tão mal a diviso,
me garante que não há vigias.
Nem sinal de uma entrada na gruta.
É enorme o lendário rochedo!
Meu olhar, sob a noite, perscruta.
Sinto o frio suado do medo.
Frente a frente, o Passado e o Presente.
Balbucio as palavras da senha
e, ante mim, a surgir, de repente,
a verdade que a lenda desenha.
Devagar, passo a passo, franqueio
o portal que se abriu por encanto.
Circunvago o olhar, sem receio,
e respiro um Passado de espanto.
Das pegadas de Ali nem vestígio.
Das riquezas da lenda nem rastro.
Entre o ser e o não-ser, o litígio
da firmeza do vento e do mastro.
E contrárias as forças serão
das firmezas do mastro e do vento,
quando a vela se enfuna evasão
e nas ondas se vai movimento?
E se falo de mar, o Simbad,
da penumbra do tempo lendário,
vem velar, nos jardins de Bagdad,
o estertor do ladrão sanguinário.
Mas eu quero bem junto de mim,
neste transe de angústia e de espera,
a lanterna que foi de Aladim,
inventando no caos a quimera.
Lá do fundo da gruta, o ruído
se aproxima de uns passos seguros…
Não é sonho, é alguém decidido
que regressa aos instantes futuros.
Aproxima-se um velho de mim.
Traz nas mãos a lanterna apagada.
Reconheço o lendário Aladim
no seu rosto de barba nevada.
Com um gesto me manda sentar
nas areias ocultas da gruta.
Só um raio de níveo luar
nos observa em silêncio de escuta.
Quando o velho me fala, estremeço:
--- Alá seja contigo, meu filho!
Do Passado que sou reconheço,
no Presente que fores, o trilho.
Quando intento a resposta, num gesto
me remete ao silêncio. Obedeço.
E prossegue num claro requesto
de uma angústia em que me reconheço:
--- Na magia sem tempo da vida,
são um só o Passado e o Presente.
Somos ambos, na espera sofrida,
o caminho de nós, livremente.
O murmúrio do Tigre se expande
pelas terras do Fértil Crescente.
E não há quem o cale ou lhe mande
suspender ou mudar a corrente.
Nestas terras de sonhos e lendas,
sob um céu polvilhado de estrelas,
há milénios que erguemos as tendas
na ilusão de senti-las e tê-las.
Neste berço nasceu Abrahão,
que foi pai de Ismael e de Isaque…
Novas hordas de hodierna agressão
nos flagelam em bárbaro ataque.
É o Inferno de portas abertas.
Jorra o sangue na fúria ululante,
desenhando as auroras incertas
neste céu cada vez mais distante.
Talvez seja a sentença já vista
do martírio em Sodoma e Gomorra:
p’ra que a vida na graça persista
é preciso que a mácula morra!
Sem palavras, no tempo medito:
no que fomos, no quanto sonhámos…
E pergunto-me, incrédulo e aflito:
onde foi que nós todos errámos?
Aladim, em silêncio, se afasta.
Lá vai ele, lanterna na mão.
Só, na dúvida que me desgasta,
sinto a dor que devasta o meu chão.
*
José-Augusto de Carvalho
Porto Alegre, Primavera de 2002
Alentejo, Janeiro de 2019.
Sem comentários:
Enviar um comentário