Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 30 de dezembro de 2018

17 - POEMÁRIO * O jogo


TEMPO DE SORTILÉGIO 


O jogo 







Que vivas as certezas que te deste, 

no espaço e neste tempo que é o teu! 

Efémero é o tempo que me veste, 

o tempo que só dúvidas me deu. 



Certezas tenho duas, que não mais! 

Sei que nasci e sei que vou morrer. 

No meu percurso, enxergo alguns sinais: 

quais devo preterir ou escolher? 



Um jogo que é de azar me deu a vida. 

O acaso que é dos dados desconheço. 

Não tenho alternativa na partida: 

dependo do que for cada arremesso. 



Na sorte arrisco tudo --- ou ganho ou perco… 

Que existe além da angústia deste cerco? 





José-Augusto de Carvalho 
30 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Caminheiro


O MEU RIMANCEIRO 


Caminheiro 



Nesta minha condição
de estar-ser em movimento,
no bornal da solidão
carrego, por alimento,
bagas rubras de medronho,
tontas de silvestre sonho.

Passam por mim, prazenteiros,
os eternos aprendizes,
sonhando-se feiticeiros
de perfumes e matizes,
atapetando as estradas
de falácias e outros nadas.

Condescendo, num sorriso,
responder-lhes aos acenos.
É linear o meu juízo:
desencontros de somenos
são hiatos na paisagem
de qualquer tempo em viagem.



José-Augusto de Carvalho
3 de Junho de 2009.
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

17 - POEMÁRIO * Tanto me tardas!...


TEMPO DE SORTILÉGIO 


Tanto me tardas!... 





Tanto me tardas --- e tão longe moras! 

Olho o relógio --- lentos, os ponteiros… 

Mais me parecem séculos as horas! 



Na noite dos silêncios carcereiros, 

uivam os cães a dor da solidão, 

alheios a relógios e ponteiros… 



E tu me tardas tanto na ilusão 

de nos sonharmos vivos outra vez, 

aquém e além da nossa perdição… 



Não tardes mais --- será que tu não vês, 

dos longes onde moras, 

que os séculos das horas 

nos perdem… e de vez? 





José-Augusto de Carvalho 
25 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

sábado, 22 de dezembro de 2018

17 - POEMÁRIO * Uma partícula de céu


(Tempo de Sortilégio) 


Uma partícula de céu 






Azul é cor de céu, variam os matizes, 

num jogo que é de luz – que singular talento! 

A tarde está no fim -- é quando tu me dizes: 

será que Deus existe e nele aqui me invento? 



E neste arroubo, és tu, tão solta das raízes 

deste materno chão, no cósmico momento 

ganhando a dimensão que inventes e que irises 

do indivisível todo – enigma e envolvimento… 



Nem quando o vento arrasta as nuvens mais cinzentas 

e o todo sobre nós é um espesso véu 

de raios e trovões, tumultos e tormentas, 



tu deixarás de ser, além do espesso véu, 

um pedacinho azul do eterno que acalentas, 

partícula do todo -- enigma deste céu! 





José-Augusto de Carvalho 
21 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

17 - POEMÁRIO, * Tela naturalista


(NA ESTRADA DE DAMASCO) 


TELA NATURALISTA 





Dezembro já chegou, de frio a tiritar. 

No desconforto, evoca o assombro de nascer. 

Que véu sobre o devir me impede de enxergar 

a graça de entrever o tempo por haver? 



A dúvida de ser exausta permanece, 

desesperando já a minha longa espera. 

Ai, que esperança de alma enternecida tece 

a remissão no Amor que tudo regenera? 



Já chia e já fumega o caldo na panela. 

A mesa sonha o pão suado da partilha. 

Insone, a noite dói, por látegos ferida. 



Desliza a neve na vidraça da janela. 

O vento, sem cessar, monótono dedilha 

a melodia triste, há tanto repetida… 





José-Augusto de Carvalho 
19 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

sábado, 15 de dezembro de 2018

02 - POESIA VIVA * Agora nós!



CANTO REVELADO

Agora nós! 


Esquerda: Desenho de Michelangelo nos estudos feitos na Cappella Brancacci 
para a Capela Sistina. Os desenhos se encontram em Paris, no Louvre.
Direita: Expulsão de Adão e Eva - Masaccio - Cappella Brancacci 





Sem Cosmos e sem Deus, ficámos sós. 

Olhámo-nos após a queda abrupta: 

restava o galho ou disputar a gruta 

e a decisão final --- agora nós! 



E vamos, nesta história mal contada, 

Narcisos sem espelho de água clara, 

na busca de nós mesmos, que não pára, 

na busca milenar de ser buscada. 



Buscar que é um processo definido 

na condição de verbo transitivo: 

Buscar o quê? O que ficou cativo? 

O Paraíso onírico e perdido? 



Ousamos mais aqui, ali nem tanto, 

sempre ao sabor dos ânimos e anseios, 

como se tudo fossem os gorjeios 

angelicais de algum sonhado canto… 



Nas horas de incerteza ou pasmaceira, 

arengam charlatães as ladainhas 

de pobres, de milagres, de rainhas, 

de pão sem ter havido sementeira… 



E numa procissão de migrações, 

andamos, transumantes sem rebanhos, 

no mundo que é o nosso, como estranhos, 

erguendo totens e outras perdições. 



O resultado somos, liquefeito, 

nos tempos desta pós-modernidade: 

modelo modelado --- identidade 

em tudo igual do avesso e do direito. 





José-Augusto de Carvalho 
15 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal


terça-feira, 11 de dezembro de 2018

02 - POESIA VIVA * À bolina...



CANTO REVELADO 
À BOLINA… 





No meu alforge trago a referência: 

a sede no cantil mitigada, 

a fome no taleigo saciada, 

a paz duma frugal sobrevivência.. 



No peito trago o coração pulsante 

de velas navegando contra o vento 

clamando em qualquer tempo é o momento 

de ser e de rumar para diante. 



Que fique para trás o tempo morto 

que apenas é presente na lembrança 

e nas saudades raras de criança 

consegue dar-me instantes de conforto. 



O tempo é este tempo que me imponho: 

o tempo meu --- doutro nenhum disponho… 





José-Augusto de Carvalho 
11 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

sábado, 8 de dezembro de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Da pluralidade



O MEU RIMANCEIRO 
(QUE VVA O CORDEL!) 


Da pluralidade 



No reino do faz de conta, 

a identidade é plural: 

contradição ou afronta 

é condição natural. 



Há um reizinho qualquer, 

se é reino tem de ter rei, 

ora homem, ora mulher, 

a pluralidade é Lei. 



Ser isto ou o seu contrário, 

ser avesso ou ser direito, 

tudo consta do inventário 

onde se almeja o perfeito. 



Ser diverso ou ser afim, 

géneros em profusão! 

Que louvar a Deus sem fim 

desta plural criação. 



Do diverso ao semelhante, 

do que viste ao que não viste, 

tudo o que existe garante 

que é criação, logo existe. 



Tudo o mais é preconceito, 

porquês da Filosofia 

porque ignora o Direito 

de existir da pandemia. 



Não há por que haver porquê. 

Seja o que à Vida aprouver! 

E no fim, logo se vê! 

Que seja o que Deus quiser! 




José-Augusto de Carvalho 
8 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * A falsa questão




O MEU RIMANCEIRO
.
(QUE VIVA O CORDEL!)

*
A FALSA QUESTÃO




Temer ou não temer --- eis a questão!
Sabia o velho Esopo, porque lia
a Natureza-Mãe com atenção,
aquela antiga história da guria
que fez da imprevidência condição
na hora em que aceitou por companhia
o astuto escorpião
naquela derradeira travessia.
.
E não houve depois para contar…
Temer ou não temer --- falsa questão!
O certo é não errar.
Quem erra por tolice ou distracção,
tem sempre uma factura pra pagar.
Quer se queira, quer não,
jamais a sua condição irá mudar
o astuto escorpião.

*
José-Augusto de Carvalho
5 de Dezembro de 2018.
Alentejo*Portugal

terça-feira, 27 de novembro de 2018

02 - POESIA VIVA * Manifesto

NA PALAVRA É QUE VOU...
.

Manifesto 


Ícaro, tela de Chagall 




Questiono ou não os meus antepassados? 

São eu neste outro tempo modelados… 

Todo o tempo é composto de mudanças… 

ganhando ou não ganhando qualidades, 

perdendo ou não perdendo qualidades… 

Não vou dobrar o Cabo Bojador… 

Como ir além do medo? Além da dor? 

Não vou dobrar o Cabo das Tormentas… 

Perene é a tormenta, 

distante a esperança que persigo… 

Persiste à minha frente o Cabo Não, 

num desafio instante e perigoso… 

Herdeiro sou de fastos e misérias, 

aos ombros trago o Tudo, trago o Nada, 

o vinho e o pão da minha mesa efémera… 

Os passos que já dei 

não voltarei a dar… 

Ninguém banhar-se pode duas vezes 

nas mesmas águas deste nosso rio… 

Tinha toda a razão o velho Heráclito! 

Aqui e sem negar-me tento ser 

o impulso a projectar-me para diante. 

Memória do que fui, a minha história, 

outra não tenho para me contar… 

São fastos, são misérias, são heranças 

que herdei dos outros eus que fui inteiro… 

Mantenho ou não a glória desses fastos? 

Corrijo ou não a dor dessas misérias? 

Venha o primeiro justo condenar-me! 

Venha a primeira pedra castigar-me! 

Depois de mim que venham outros eus 

justificar-me ou não 

ou redimir-me ou não… 





José-Augusto de Carvalho 
27 de Novembro de 2018. 
Alentejo * Portugal 

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

17 - POEMÁRIO * A súplica


TUPHY VIVE! 

*

A súplica 





Vem a palavra súplice e molhada 

dizer-me entre soluços por que chora. 

E eu ouço, no silêncio, a madrugada: 

Quem vem falar contigo a esta hora? 



Sossego a madrugada desta insónia: 

alguém que se perdeu e busca auxílio 

num sonho de encantar de Babilónia 

que sofre no meu peito a dor do exílio. 



Alguém que vai morrer quando eu morrer, 

que quer comigo ser a mesma entrega… 

E, em paz, agora, tenta adormecer, 

já sinto prestes a manhã --- sossega! 



José-Augusto de Carvalho 
21 de Novembro de 2018. 
Alentejo * Portugal 



17 - POEMÁRIO * A sol-pôr



(Tuphy vive!) 


Ao sol-pôr 







Eu dei-me numa tarde de Novembro. 

Comigo só ficou o teu sorriso, 

agora que de ti apenas lembro 

o nada-tudo de que só preciso. 



Não mais o tempo em flor de Primavera! 

Não mais o verde-mar do teu olhar! 

Agora, sou, sozinho, a minha espera, 

outra espera de nós neste ficar. 



Germinou a semente e foi raiz. 

Surgiu-cresceu o caule e deu-se flor. 

Milagre de existir que assim nos quis 

do sol nascente até ao meu sol-pôr. 



O mais que houver será uma outra espera 

de um outro tempo, de outra primavera… 





José-Augusto de Carvalho 
21 de Novembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

sábado, 17 de novembro de 2018

17 - POEMÁRIO `Ali Baba



O MEU RIMANCEIRO
.
(QUE VIVA O CORDEL!)

*
ALI BABA



Ali Baba, a lenda que ficou
do chefe dos ladrões – eram quarenta.
D’As mil e uma noites transitou
a lenda para a vida e tanto bem medrou
que por feitiço dia a dia aumenta.

O roubo ganhou formas e matizes
e tanto medra a solo e medra em coro!…
As vítimas se queixam: que juízes,
perante as nossas roxas cicatrizes,
acabam com tamanho desaforo?

Ecoam pelas ruas, pelas praças,
protestos e lamúrias, mas em vão.
São de raiz os males e as trapaças.
Com panos quentes, faças o que faças,
não mudas nunca a sua condição.

Arranca o que é daninho, o que não presta,
permite que germine outra semente,
e colherás suado mas em festa
o pão e o vinho, as flores da giesta,
cumprido como vida e como gente…


José-Augusto de Carvalho
17 de Novembro de 2018.
Alentejo * Portugal

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

02 - POESIA VIVA - Esta Ponte!


TUPHY VIVE! 

Esta Ponte! 




Há uma ponte que liga 

as duas margens do abismo 

que foi cavado no tempo 

da severa intolerância. 



Há um abismo que quer 

separar-nos para sempre… 

Para sempre é muito tempo 

e nós nem fomos ouvidos 

por quem cavou este abismo 

para separar o corpos 

que estiveram sempre unidos. 



Há uma ponte que erguemos 

desde os tempos da discórdia 

dos impérios e das crenças 

para separar os corpos 

que sempre tanto se amaram. 



Há uma ponte de Vida 

que não será destruída 

enquanto a Vida for Vida. 



José-Augusto de Carvalho 
16 de Novembro de 2018 
Alentejo » Portugal

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

17 - POEMÁRIO * Representação


TEMPO DE SORTILÉGIO
.
Representação 




O tempo está mudado, meu amor. 

Olha, começa a representação: 

ao céu azul o chumbo rouba a cor, 

sem luz já se angustia o coração. 



As nuvens se acastelam, uiva o vento; 

não tarda já horríssono o trovão; 

não tarda já o látego sedento 

e em fogo as piras da devastação. 



Estamos nós aquém - além da cena 

ou seremos também no palco actores? 

Quem contigo ou comigo contracena 

o Bem e o Mal --- a preto e branco e a cores? 



A fuga é impossível, meu amor! 

O Tudo e o Nada aqui representamos. 

O que tiver de ser, seja o que for, 

vai depender do quanto aqui nos damos. 



E a queda, se ocorrer, que se redima 

na força da semente que carrega… 

que possa ser ou seja o verso e a rima 

do amor que não se rende nem se nega. 



José-Augusto de Carvalho 
14 de Novembro de 2018. 
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

17 - POEMÁRIO * Epitáfio


DO MAR E DE NÓS

*

Epitáfio 


(Evocação do trágico naufrágio de Bartolomeu Dias, 
porventura o maior navegador português --- o “Capitão do Fim”, 
como lhe chamou Fernando Pessoa) 




Os medos enublados da procela. 

O mastro geme, inúteis leme e vela. 



O frágil lenho sobe as altas vagas, 

para descer aos vales quase a pique! 

Que acima da procela, de ti fique 

o sonho no momento em que naufragas! 



As horas em que vive a perdição, 

benditas já p’la derradeira prece… 

O frio que te abraça e te arrefece, 

memória e lenda em trágico padrão… 



E foi mais do que as Índias e os Brasis 

e as ânsias de conquistas e as usuras, 

o alor imperecível dum país, 

o fel e o mel de todas as loucuras… 



José-Augusto de Carvalho 
28 de Janeiro de 1997. 
Alentejo * Portugal

sábado, 29 de setembro de 2018

01 - POSIÇÃO * Eu, aqui!


NA PALAVRA É QUE VOU...
.
Eu, aqui!



Eu, português, aqui me situo:

Nesta Península europeia, banhada a Norte e Ocidente pelo Oceano Atlântico e a Sul e Oriente pelo mesmo Oceano e pelo Mar Mediterrâneo, eu sou, hoje, resultante de todos os que existiram antes de mim.

Fui ibero, quando a Península assumiu a designação de Ibéria; fui hispano quando o Império Romano decidiu designar a Ibéria como Hispânia; fui andalusi quando a dominação muçulmana chamou Al-Ândalus à velha Ibéria e à romana Hispânia; subsidiariamente, até poderei ter sido sefardita, já que a migração hebraica chamou Sefarad a esta minha muito amada e mátria península.

Não sei o que os rigorosos Historiadores pensarão do que eu digo; mas eu sei que a nostalgia dos tempos passados me leva a reclamar toda esta ascendência, para o Bem e para o Mal.

E não estou sozinho nesta nostalgia. Dos nossos tão antigos avoengos sobressai, entre outros, o lusitano Viriato, ibero e integrante da Lusitânia, chefe assassinado da resistência ao invasor Império Romano mais de um século antes da nossa era. Ora pois! Se a independência de Portugal remonta a 1.143, século XII, falamos de um ibero-lusitano que viveu e morreu (grosso modo) 1.200 anos antes de Portugal existir como país. E aqui chego à nostalgia dos tempos idos. A célebre resposta “Roma não paga a traidores” que terão recebido os assassinos de Viriato quando pretenderam receber o prémio da acção para que haviam sido aliciados está conforme as relações entre vencedores e vencidos. “Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”.

O Império Romano procedeu como sempre procedem os dominadores: autoridades pela razão da força, trouxeram inegavelmente saber e desenvolvimento e exploraram as riquezas naturais como proprietários que eram de facto.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / ganhando sempre novas qualidades”, precisou lucidamente Luís de Camões num dos seus sonetos mais famosos.

Está estudada a romanização de muitos e muitos países que surgiram na fase pós-romana. E não tenho conhecimento de os naturais destes países reclamarem o pouco ou o muito de que se apropriou o Império Romano ou de se permitirem apodá-lo de ladrão. E o motivo é claro: conforme o tempo que se vivia, os territórios ocupados eram propriedade do ocupante.

Ao que me consta, corre por aí uma “bem-pensante” teoria de que se deve reescrever a História e, mais ainda, ler o Passado com os olhos do Presente. E assim sendo, avante o julgamento do Passado! Ora do passado mais remoto ao mais recente se reclama a evolução da Humanidade. O Presente não mais é do que o resultado das lutas evolutivas, ora ganhas, ora perdidas, lutas onde venceram ou foram vencidos aqueles que querem hoje sentar no banco dos réus do tribunal do Presente.

Nesta miscigenação actual, quem me garante que no meu sangue não há vestígios de mártires ou de verdugos, de justiceiros ou de rendidos com honra ou sem ela?

Eu, português, aqui me situo como consequência do tudo que me gerou.

Sem preconceitos, sem jactâncias nem penitências e para o Bem e para o Mal, aqui estou na afirmação do que sou, conforme o tempo que vivo.



José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 28 de Setembro de 2018.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

17 - POEMÁRIO * Terra antiga


CLAVE DE SUL
.
Terra antiga 

Dórdio Gomes, Pintor Alentejano
(Com a devida vénia)

Para
Andrade da Silva e Serafim Pinheiro,
Capitães de Abril, meus Amigos



Na manhã sem palavras, a brisa 

orvalhada desliza 

no meu rosto. 

Na carícia de honesta ternura, 

sinto o gosto 

e o perfume da fruta madura. 

Terra antiga, 

suada e desnuda, 

que não muda 

quando a noite é de treva e castiga. 

Terra antiga de mágoas carpindo 

quando a força esmorece… 

Terra antiga do sonho mais lindo 

que entre mágoas e dor se levanta 

e manhã na manhã que amanhece 

polifónica canta. 

Terra antiga de Abril e de Maio maduro, 

que é de mar e de pão e de vinho! 

Terra antiga inventando o caminho 

do futuro 

com açordas de audácia e pão duro… 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 13 de Setembro de 2018. 

terça-feira, 11 de setembro de 2018

02 - POESIA VIVA * Poema de Jorge de Sena


LIBERDADE E CIDADANIA 
Poema de Jorge de Sena
*
Liberdade, Liberdade, 
Tem Cuidado Que Te Matam



Da prisão negra em que estavas
a porta abriu-se p´ra rua.
Já sem algemas escravas,
igual à cor que sonhavas,
vais vestida de estar nua.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Na rua passas cantando,
e o povo canta contigo.
Por onde tu vais passando
mais gente se vai juntando,
porque o povo é teu amigo.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Entre o povo que te aclama,
contente de poder ver-te,
há gente que por ti chama
para arrastar-te na lama
em que outros irão prender-te.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Muitos correndo apressados
querem ter-te só p´ra si;
e gritam tão de esganados
só por tachos cobiçados,
e não por amor de ti.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Na sombra dos seus salões
de mandar em companhias,
poderosos figurões
afiam já os facões
com que matar alegrias.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
E além do mar oceano
o maligno grão poder
já se apresta p´ra teu dano,
todo violência e engano,
para deitar-te a perder.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Com desordens, falsidades,
economia desfeita;
com calculada maldade,
Promessas de felicidade
e a miséria mais estreita.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Que muito povo se assuste,
julgando que és tu culpada,
eis o terrível embuste
por qualquer preço que custe
com que te armam a cilada.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.
.
Tens de saber que o inimigo
quer matar-te à falsa fé.
Ah tem cuidado contigo;
quem te respeita é um amigo,
quem não respeita não é.
.
Liberdade, liberdade,
tem cuidado que te matam.

*