Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 31 de janeiro de 2010

10 - JORNAL DE PAREDE * O Haiti existe?


Texto de Frei Betto

Interessados em exibir na Europa uma coleção de animais exóticos, no início do século XIX, dois franceses, os irmãos Edouard e Jules Verreaux, viajaram à África do Sul. A fotografia ainda não havia sido inventada, e a única maneira de saciar a curiosidade do público era, além do desenho e da pintura, a taxidermia, empalhar animais mortos, ou levá-los vivos aos zoológicos.

No museu da família Verreaux os visitantes apreciavam girafas, elefantes, macacos e rinocerontes. Para ela, não poderia faltar um negro. Os irmãos aplicaram a taxidermia ao cadáver de um e o expuseram, de pé, numa vitrine de Paris; tinha uma lança numa das mãos e um escudo na outra.

Ao falir o museu, os Verreaux venderam a coleção. Francesc Darder, veterinário catalão, primeiro diretor do zoológico de Barcelona, arrematou parte do acervo, incluído o africano. Em 1916, abriu seu próprio museu em Banyoles, na Espanha.

Em 1991, o médico haitiano Alphonse Arcelin visitou o Museu Darder. O negro reconheceu o negro. Pela primeira vez, aquele morto mereceu compaixão. Indignado, Arcelin pôs a boca no mundo, às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos de Barcelona. Conclamou os países africanos a sabotarem o evento. O próprio Comitê Olímpico interveio para que o cadáver fosse retirado do museu.

Terminadas as Olimpíadas, a população de Banyoles voltou ao tema. Muitos insistiam que a cidade não deveria abrir mão de uma tradicional peça de seu patrimônio cultural. Arcelin mobilizou governos de países africanos, a Organização para a Unidade Africana, e até Kofi Annam, então secretário-geral da ONU. Vendo-se em palpos de aranha, o governo Aznar decidiu devolver o morto à sua terra de origem. O negro foi descatalogado como peça de museu e, enfim, reconhecido em sua condição humana. Mereceu enterro condigno em Botswana.

Em meus tempos de revista "Realidade", nos anos 60, escandalizou o Brasil a reportagem de capa que trazia, como título, "O Piauí existe." Foi uma forma de chamar a atenção dos brasileiros para o mais pobre estado do Brasil, ignorado pelo poder e pela opinião públicos.

O terremoto que arruinou o Haiti nos induz à pergunta: o Haiti existe? Hoje, sim. Mas, e antes de ser arruinado pelo terremoto? Quem se importava com a miséria daquele país? Quem se perguntava por que o Brasil enviou para lá tropas a pedido da ONU? E agora, será que a catástrofe - a mais terrível que presencio ao longo da vida - é mera culpa dos desarranjos da natureza? Ou de Deus, que se mantém silencioso frente ao drama de milhares de mortos, feridos e desamparados?

Colonizado por espanhóis e franceses, o Haiti conquistou sua independência em 1804, o que lhe custou um duro castigo: os escravagistas europeus e estadunidenses o mantiveram sob bloqueio comercial durante 60 anos.

Na segunda metade do século XIX e início do XX, o Haiti teve 20 governantes, dos quais 16 foram depostos ou assassinados.

De 1915 a 1934 os EUA ocuparam o Haiti. Em 1957, o médico François Duvalier, conhecido como Papa Doc, elegeu-se presidente, instalou uma cruel ditadura apoiada pelos tonton macoutes (bichos-papões) e pelos EUA. A partir de 1964, tornou-se presidente vitalício... Ao morrer em 1971, foi sucedido por seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que governou até 1986, quando se refugiou na França.

O Haiti foi invadido pela França em 1869; pela Espanha em 1871; pela Inglaterra em 1877; pelos EUA em 1914 e em 1915, permanecendo até 1934; pelos EUA, de novo, em 1969.

As primeiras eleições democráticas ocorreram em 1990; elegeu-se o padre Jean-Bertrand Aristide, cujo governo foi decepcionante. Deposto em 1991 pelos militares, refugiou-se nos EUA. Retornou ao poder em 1994 e, em 2004, acusado de corrupção e conivência com Washington, exilou-se na África do Sul. Embora presidido hoje por René Préval, o Haiti é mantido sob intervenção da ONU e agora ocupado, de fato, por tropas usamericanas.

Para o Ocidente "civilizado e cristão", o Haiti sempre foi um negro inerte na vitrine, empalhado em sua própria miséria. Por isso, a mídia do branco exibe, pela primeira vez, os corpos destroçados pelo terremoto. Ninguém viu, por TV ou fotos, algo semelhante na Nova Orleans destruída pelo furacão ou no Iraque atingido pelas bombas. Nem mesmo após a passagem do tsunami na Indonésia.

Agora, o Haiti pesa em nossa consciência, fere nossa sensibilidade, arranca-nos lágrimas de compaixão, desafia a nossa impotência. Porque sabemos que se arruinou, não apenas por causa do terremoto, mas sobretudo pelo descaso de nossa dessolidariedade.

Outros países sofrem sísmos e nem por isso destroços e vítimas são tantos. Ao Haiti enviamos "missões de paz", tropas de intervenção, ajudas humanitárias; jamais projetos de desenvolvimento sustentável.

Findas as ações emergenciais, quem haverá de reconhecer o Haiti como nação soberana, independente, com direito à sua autodeterminação? Quem abraçará o exemplo da dra. Zilda Arns, de ensinar o povo a ser sujeito multiplicador e emancipador de sua própria história?

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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

02 - POESIA VIVA * A gente não se despede de Mário Benedetti


Texto de Urda Alice Klueger

Ele já estava com mais de trinta anos quando eu nasci, mas só fui conhecê-lo em idade adulta. Um ser como ele, único na sua espécie, decerto já andava a espargir o seu pó de pirlimpimpim por sobre sangues, lutas e esperanças lá na altura em que eu nasci, mas muito tempo passou para eu tomar contato com a sua magia – fui criança, fui adolescente, fui jovem, tornei-me madura (será que algum dia a gente, realmente, amadurece?) sem me dar conta que ali, do outro lado da fronteira (fronteiras, pois também viveu como exilado. Como alguém com a espantosa grandeza d’alma que ele tinha não andar exilado em plena Operação Condor, quando os que nos dirigiam eram títeres formatados por algo nefando como a Escola das Américas[1]?) havia aquele homem que era pura luz, e que como nenhum outro até então soube contar e cantar esta nossa América na limpidez lúcida e corajosa dos seus versos ímpares.
Mário Benedetti entrou na minha vida através de um poema de amor que era cheio de erotismo, e fiquei curiosa com aquele poeta que me chegava do Uruguai (embora os tantos exílios), e tão curiosa fiquei que quis saber mais, e fui mergulhando na sua produção, na sua longa obra de tão longos anos, até o dia em que me deparei com aquele poema único dos únicos: “Te quiero”:

“(...)

Tus ojos son mi conjuro
contra la mala jornada;
te quiero por tu mirada
que mira y siembra futuro.

Tu boca que es tuya e mia
tu boca no se equivoca
te quiero por que tu boca
sabe gritar rebeldia.

Se te quiero es porque sos
mi amor mi cómplice y todo.
Y en la calle codo a codo
somos muchos más que dos.

(...)” [2]
Céus, aquilo era o meu sonho de vida! “...En la calle codo a codo somos muchos más que dos.” Calou-me tão fundo à alma que fiquei a pensar se haveria para mim este parceiro que me completaria tão completamente, tão completamente... Sonha-se; assim é a vida, e ninguém como Mário Benedetti para nos atirar para dentro do mundo diáfano, colorido e real dos sonhos – depois de se ler um poema assim, a gente passa a ver que tudo é possível. Tomei-me de tal carinho por “Te quiero” que como que o afivelei com toda a força ao meu coração sempre tão solitário, e ele era como um arrimo para a minha solidão, enquanto descobria mais e mais pérolas desse uruguaio único que era capaz de desestabilizar ditaduras cruéis com a força da sua palavra, a ponto de estar tendo sempre que ir trocando de país por onde o Condor voava...
A gente querendo ou não, a vida vai passando e muitas coisas vão acontecendo. Em maio de 2009 eu estava convidada para um evento cultural no Mestrado em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai – URI - na cidade de Frederico Westphalen/RS, grande evento internacional, que reunia gente da área de Letras de mais de um país. Lá estavam três uruguaios convidados: o escritor Ignacio Martinez, Mariel Cardozo e Graciela Veiga. Foram dias e noites maravilhosas, onde desfrutamos de inúmeras atividades culturais naquele cursos de Letras que me pareceu, também, único – nunca vi outro com tal qualidade e garra pelos lugares onde até hoje andei – e onde professores e convidados fazíamos as refeições juntos em lindos restaurantes, refeições que acabavam se transformando em tertúlias, e numa dessas noites, à hora da sobremesa, os uruguaios passaram a declamar poemas de sua terra, notadamente de Mário Benedetti, e eu pedi: “Ah, por favor, por favor, declamem Te quiero, aquele que diz: "Y en la calle codo a codo somos muchos más que dos!".
Muito vã a minha ênfase! Se eu cá de outro país, de outra língua, sabia tanto do poema para dizer seu nome e aquele pedacinho fascinante, o que esperar de legítimos uruguaios? Então houve o momento mágico: nuestros hermanos passaram imediatamente para o poema, mas não se limitaram a declamá-lo: no Uruguai, ele é música! Ignácio Martinez tomou de um violão, e pela primeira vez na vida eu ouvia, transformados em canção, aqueles versos únicos:
“(...)Te quiero em mi paraíso;
es decir, que em mi país
la gente vive feliz
aunque no tenga permiso (...)” [3]
Aquele foi um dos momentos pelos quais vale a pena viver! Emocionadíssima, coração aos saltos, lágrimas nos olhos, eu esperei o final daquela canção fascinante e então assegurei aos irmãos uruguaios: “Se Mário Benedetti morrer antes que eu, não importa se daqui a um ou a vinte anos, eu vou fazer uma crônica de despedida a ele relembrando este momento ímpar aqui em Frederico Westphalen, na companhia de vocês!”.
Um dia ou dois depois voltei para minha casa – e no terceiro dia depois daquela noite, Mário Benedetti morreu, aos 89 anos. Gastara até o fim a sua vida usando a palavra como carícia e como arma contundente, e deixou para a humanidade um legado que dificilmente poderá ser suplantado. Eu fiquei com aquilo engolido na minha alma como se tivesse um espinho a atravessá-la, e só agora, mais de sete meses depois, é que me sento para fazer a despedida prometida lá em Frederico Westphalen.
Só que não é despedida, porém. Lá do outro lado da vida, Mário Benedetti não nos abandona. Faz um dia ou dois que ele, de repente, reaparece na telinha do meu computador, trazendo toda a esperança e a inquietação que sempre causou ao longo da sua vida:
“Que passaria se un dia
Despertarmos dandonos
Cuenta de que somos mayoría?
(...)Que passaria?”[4]
Ah! Mestre, Mestre, não há como despedir-me de ti! És como nosso alter ego, nossa consciência mais profunda, nossa esperança mais certa, nossa sensibilidade mais aflorada! Que acontecerá quando na rua, lado a lado, formos muito mais que dois? Ai, Mestre, como me atinges profundamente o coração!
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Blumenau, 06 de janeiro de 2010 – Dia de Reis
Urda Alice Klueger
Escritora.
Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz
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Notas:
[1] A Escola das Américas, instituição estadunidense que funcionou desde 1946 no Panamá, formando torturadores e outros sádicos para dominarem a América dita Latina, atualmente está funcionando no Fort Benning, estado da Geórgia/EUA, com o nome de Instituto de Cooperação para a Segurança Hemisférica.
[2] “(...) Teus olhos são meu conjuro/ contra a má jornada/ te quero por teu olhar/ que olha e semeia o futuro// Tua boca é tua e minha/ tua boca não se equivoca/ te quero porque tua boca/ sabe gritar rebeldia.// Se te quero é porque sois/ meu amor, minha cúmplice e tudo. E nas ruas lado a lado/ somos muito mais que dois.( ...)
[3] “Te quero em meu paraíso/ e dizer que em meu país/ as pessoas vivem felizes/ embora não tenham permissão.(...)”
[4] Que aconteceria se um dia/ despertarmos dando-nos/ conta de que somos mayoria? (...) Que aconteceria?
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

05 - REFLEXÕES * O mocho


Naquela noite, o mocho não piou no meu quintal, como era seu costume, à hora certa do meu adormecer.


Nada entendo do código das aves nem soube ainda por que diz o povo que o mocho, em seu piar, nos traz agouro.


Apenas sei que aquela noite antiga era uma noite igual a todas as demais de primavera.


Cansado, adormeci, sem me ocorrer sequer conjecturar sobre o porquê da ausência do mensageiro alado de desgraças e meu nocturno e velho companheiro das minhas noites fartas de cansaço.


Acordei ao som do meu despertador. Um pouco quase nada antes das sete. O rádio, à cabeceira, dava a noticia:


Aqui, Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas...


Do meu quintal, chegava o pipilar vestido de ternura das aves que saudavam a manhã.


E, nesse instante, dei comigo a perguntar-me:
Por que motivo não teria vindo o mocho, ontem, à hora do meu adormecer?


Gabriel de Fochem
25 de Agosto de 2008.