NA PALAVRA É QUE VOU...
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S a u d a d e
É um dia abrasador de Julho. O quintal ganha os contornos duma fornalha. Ao fundo, corre a rua empinada. São duas horas da tarde. Sonolenta, a vila estiraçada ao sol. Nem viv’alma. As cigarras cantam, ensurdecendo tudo e todos, esquecidas ou ignorantes da fábula.
Maria sai da cozinha com um alguidar de roupa lavada. Com a destreza da experiência dos anos, começa a dependurá-la na corda que atravessa o quintal de topo a topo. Com este calor, daqui a nada estará seca, murmura de si para si.
Soa a aldraba do portão que dá para a rua empinada. Maria grita lá vou… e vai abrir o portão. É a filha que chega de Évora, vem afogueada e protesta:
--- Que calor, mãe! Passa dos quarenta graus! E a camioneta da carreira é uma frigideira!
Maria encolhe os ombros resignada e corrobora o protesto:
--- Este maldito verão é sempre assim, filha! O expresso para Lisboa tem ar condicionado, mas as carreiras, aqui na zona, são esta vergonha… O povo não merece mais!
D’Airinhas é uma estampa de rapariga. Andará pelos dezoito anos. Sorri para a mãe e repreende-a com doçura:
--- Oh, mãe, lá vem a política outra vez!
Maria enfrenta a filha com severidade:
--- Maria d’Aires, a tua mãe sabe o que é a vida! Tu é que não sabes nem terás idade bastante para saber! Habitua-te a ouvir os mais velhos, os que já viveram muitos anos! As pessoas da minha idade e as mais velhas sabem muito bem como é esta dança dos políticos, sempre prometendo, sempre arranjando desculpas para não cumprirem o que prometem… São uns mentirosos!
D’Airinhas abraça ternamente a mãe e sossega-a:
--- As coisas irão melhorar. Vivemos em democracia. A revolução pôs um ponto final nos tempos negros da ditadura.
Maria meneou a cabeça negativamente, com tristeza.
--- Filha, a revolução foi um sonho. Essa coisa de o povo é quem mais ordena era boa de mais para ser verdade! Os cravos murcharam e secaram -- são uma saudade, nada mais.
José-Augusto de Carvalho
5 de Julho de 2005.
Alentejo * Portugal
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