Boaventura:
Quinze Teses por uma nova esquerda
– 11
DE AGOSTO DE 2016
Sociólogo
sonda caminhos contra avanço da direita na América Latina. No Brasil, ele
opina, “a prioridade deve ser a reforma política e não o regressar ao governo a
todo custo, ou o mais rápido possível
Por Vitor Taveira, em Caros Amigos
Em uma
entrevista com o professor português Boaventura de Sousa Santos, para a
produção da reportagem sobre o avanço da direita na América Latina, publicada
na edição 231 de Caros Amigos, perguntei como a
esquerda poderia se contrapor à ofensiva da direita, especialmente na América
Latina. “Respondo em forma de teses para discussão”, indicou.
Boaventura
é professor da Universidade de Coimbra, Portugal, e da Universidade de Wisconsin-Madison,
EUA. Dirige o projeto de investigação ALICE – Espelhos estranhos, lições
imprevistas. É entusiasta e participante ativo do Fórum Social Mundial ao longo
dos anos, tendo trabalhado e dialogado com movimentos políticos sociais de todo
o planeta, especialmente da América Latina e outros países do Sul Global.
Seguem
abaixo as 15 questões levantadas pelo professor para reflexão.
Pluralidade
na união
A esquerda
vai certamente continuar a ser uma pluralidade de esquerdas mas a pluralidade
tem de saber ultrapassar a fragmentação e articular-se no respeito da diferença
ainda que maximizando convergências e minimizando divergências. O
fortalecimento do fascismo social com fachada política
democrática vai exigir um esforço adicional na busca de consensos que
permitam um novo tipo de frente democrática mas com a mesma abrangência das
frentes populares na Europa dos anos 1930 ante a ameaça do fascismo enquanto
regime politico (e não “apenas” enquanto regime social como acontece
atualmente). É trágico que, em tempos recentes, tenha sido mais fácil à
forças importantes de esquerda (em geral, de orientação social-democrática ou
de centro-esquerda) realizar alianças com forças de direita do que com outras
forças de esquerda. Mas as dificuldades na concretização de articulações de
esquerda não são, em geral, da responsabilidade de apenas um setor da esquerda.
Infelizmente, o sectarismo tem-se distribuído generosamente. As teses seguintes
falam de esquerda no singular para designar o campo de consensos práticos que
devem subjazer às alianças entre as esquerdas.
Poder
para a democracia
A
refundação da esquerda exige uma refundação da política concebida enquanto
teoria e prática do exercício e da transformação do poder em seu sentido mais
amplo. O poder é sempre expressão de relações desiguais que permitem a quem o
tem representar o mundo como seu e transformá-lo de acordo com as suas
necessidades, interesses e aspirações, seja esse mundo a família, a empresa, a
comunidade, a escola, o mercado, a cidadania, o globo terrestre. O poder
só é democrático quando é exercido para ampliar e aprofundar a democracia. No
seu sentido mais amplo, a democracia é todo o processo de transformação de
relações desiguais de poder em relações de autoridade partilhada. Por isso não
há sociedades democráticas; há sociedades que, quando governadas pela esquerda,
estão em processo de democratização e, quando governadas pela direita, em
processo de desdemocratização. Governar à esquerda é ampliar a democracia tanto
nas relações políticas como nas relações sociais. Governar à direita é
restringir a democracia nessas mesmas relações.
Zona
de conforto
Tanto na
oposição como no poder a esquerda deve manter a coerência entre os meios e os
fins. Não há fins honrosos quando os meios para os obter são vergonhosos. A
mesma coerência é exigida entre estar na oposição e estar no governo. Nas
sociedades dominadas pelo capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, a zona
de conforto da esquerda é a oposição. Quando no governo, o desconforto do poder
exercido na sociedade tem de ser o espelho do poder do desconforto no interior
da esquerda. Quando confortável no governo, a esquerda engana quem nela confia
e engana-se ao confiar em quem nunca deveria.
Relação
com os movimentos
Nas
condições atuais, governar à esquerda significa governar contra a corrente,
isto é, governar sem dominar os parâmetros gerais do poder que domina nas
relações econômicas, sociais, políticas, culturais e internacionais. É um
governo que para não ser frágil tem de ser duplamente forte: seguro nas raízes
e musculado nas asas. É um governo que para ser sustentável não pode apoiar-se
apenas nas instituições políticas e jurídicas. Deve saber relacionar-se
organicamente com os movimentos e organizações sociais e mesmo com a ação
direta e pacifica dos cidadãos e cidadãs. Deve, sobretudo, saber que as novas
forças de direita procurarão essa mesma relação pois a mobilização social e a
ação direta não são monopólio da esquerda. Pelo contrário, podem ser as armas
mais eficazes contra a esquerda. Por isso, a esquerda suicida-se sempre que
desperdiça ou negligencia a confiança que em si depositam os movimentos e as
organizações sociais. A confiança fortalece-se com a proximidade solidária
assente no respeito da autonomia; enfraquece-se com a distância arrogante e a
voracidade do controle.
Reforma
política
No Brasil,
o atual regime político não permite que se governe de modo coerente à esquerda.
A prioridade da esquerda dever ser a reforma política e não o regressar ao
governo a todo custo ou o mais rápido possível. Não merece a pena ter ganhos a
curto prazo se eles rapidamente se transformam em perdas de longo prazo.
A reforma política pode exigir a convocação de uma assembleia constituinte
originária. Tal exigência terá de enfrentar a poderosa contra-reforma liderada
pelo sistema judicial e pelos mídia. A reforma política deve ser orientada para
permitir uma revolução cultural e social que, a prazo, a sustente e a defenda
da persistente contra-reforma política.
Representações
A reforma
política deve ser orientada por três ideias: a democracia representativa perdeu
a capacidade de se defender das forças antidemocráticas; para que a democracia
prevaleça é necessário inventar novas institucionalidades que permitam
articular, nas diferentes escalas de governação, a democracia representativa e
a democracia participativa; em sociedades dominadas por relações capitalistas,
coloniais e patriarcais a democracia, tal como a esquerda, estão sempre em
risco; só uma vigilante economia de cuidado lhes permite sobreviver e
florescer.
Influências
Ao
contrário do que aconteceu no tempo em que havia uma separação clara entre
ditadura e democracia, as forças antidemocráticas têm hoje meios de ganhar
influência dentro dos partidos democráticos, inclusive dos que se designam de
esquerda. No atual contexto, são antidemocráticas as forças que apenas
respeitam a democracia na medida em que ela respeita os seus interesses
econômicos ou outros, não admitindo que tais interesses possam ser
reconfigurados ou afetados negativamente em resultado da competição democrática
nomeadamente quando esta procura atender a interesses de outros grupos ou
classes sociais. A debilidade da democracia representativa reside na facilidade
com que hoje minorias sociais se convertem em maiorias políticas e,
paralelamente, na facilidade com que maiorias sociais se convertem em minorias
políticas.
Para
além dos partidos
Articular
a democracia representativa (os cidadãos elegem os decisores políticos) com a
democracia participativa (os cidadãos e as comunidades organizam-se para tomar
decisões políticas) exigirá uma refundação do sistema político no seu conjunto
(novas instituições) e não apenas do regime politico (sistema de partidos,
sistema eleitoral etc.). Pressupõe que os cidadãos se possam organizar por
outras formas que não os partidos para intervir ativamente na política, via
eleições ou referendos. Pressupõe que os partidos políticos de esquerda
existentes sejam refundados de modo a que eles próprios sejam internamente
organizados por via de articulações entre democracia representativa e democracia
participativa (assembleias e ou círculos de cidadãos e cidadãs simpatizantes).
Esta última deve ter um papel central em três áreas: definição da agenda
política; seleção de candidatos aos orgãos da democracia representativa;
vigilância sobre cumprimento dos termos dos mandatos. Os novos partidos terão a
forma de partido-movimento e saberão viver com o fato de não terem o monopólio
da representação política. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos que não
se deixam politizar pelas formas dominantes de politização, sejam elas partidos
ou movimentos da sociedade civil organizada. A esmagadora maioria dos cidadãos
não tem condições ou interesse para aderir a partidos ou participar em
movimentos. Mas quando vem para a rua só surpreende as elites políticas que
perderam o contato com “as bases”.
Democracias
Dado que a
democracia representativa está muito mais consolidada que a democracia
participativa, a articulação entre as duas terá sempre de ter presente esse
desequilíbrio. O pior que pode acontecer à democracia participativa é ter todos
os defeitos da democracia representativa e nenhuma das suas virtudes.
Capitalismo
moderno
A reforma
política não vale por si. O seu objetivo é facilitar a revolução democrática
nas relações econômicas, sociais, culturais e internacionais. Por sua vez, essa
revolução tem por objetivo diminuir gradual e sustentadamente as relações de
poder desigual e as consequentes injustiças provocadas pelas três formas de
dominação moderna: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Estas três formas
de dominação operam articuladamente. Tanto o colonialismo como o patriarcado
existiram muito antes do capitalismo moderno mas foram profundamente
reconfigurados por este para servir os objetivos da expansão do capitalismo. O
patriarcado foi reconfigurado para desvalorizar o trabalho das mulheres na
família e na reconstituição da força de trabalho. Apesar de ser um trabalho
iminentemente produtivo porque produz a própria vida e foi falsamente
concebido como trabalho reprodutivo. Essa desvalorização abriu o caminho para a
desvalorização do trabalho assalariado das mulheres. O patriarcado continua
vigente apesar de todas as lutas e conquistas dos movimentos feministas e de
mulheres. Por sua vez, o colonialismo, assente na inferioridade natural de certos
grupos humanos, foi crucial para justificar a pilhagem e a despossessão, o
genocídio e a escravatura em que assentou a chamada acumulação primitiva.
Acontece que essa forma de acumulação capitalista particularmente violenta,
longe de corresponder a uma fase do desenvolvimento capitalista, é um
componente constitutivo deste. Por isso, o fim do colonialismo histórico não
significou o fim do colonialismo enquanto forma de sociabilidade e continua
hoje vigente nas formas de colonialismo interno, discriminação racial,
violência policial, trabalho escravo etc. O patriarcado e o colonialismo são os
fatores que alimentam e reproduzem o fascismo social nas sociedades que o
capitalismo vê interessadamente como politicamente democráticas. Nas condições
atuais em que domina a forma mais anti-social de capitalismo (o capitalismo
financeiro), a dominação capitalista mais do que nunca exige a dominação
colonialista e sexista. É por isso que as conquistas contra a discriminação
racial ou sexual são tão prontamente revertidas quando necessário.
Alma
pequena da esquerda
O drama
das lutas contra a dominação da época moderna foi o terem-se centrado numa das
formas de dominação negligenciando ou mesmo negando a existência das outras
formas. Assim a esquerda política tem sido, no seu melhor, anticapitalista, mas
quase sempre racista e sexista. Não podemos esquecer que a social democracia
europeia, que permitiu regular o capitalismo e criar sociedades mais justas
através da universalização dos direitos sociais e econômicos, foi tornada
possível pela exploração violenta das colônias europeias e, mais tarde, pela
subordinação neocolonialista do mundo não europeu. A fragilidade e a
reversibilidade das conquistas sociais residem em que as formas de dominação
negadas minam por dentro as conquistas contra a dominação reconhecida. Assim,
uma luta de esquerda orientada para dar um rosto mais humano ao capitalismo,
mas que despreze a existência de racismo, de colonialismo e de sexismo pode não
só causar imenso sofrimento humano como pode acabar fortalecendo o
capitalismo que quis controlar e deixar-se derrotar ingloriamente por ele. Isto
explica em parte que os governos progressistas da América Latina da última
década tenham tão facilmente minimizado os “danos colaterais” da exploração desenfreada
dos recursos naturais causada pelo consenso das commodities e aparentemente nem
se tenham dado conta que o neo-extrativismo representava a continuidade mais
direta com o colonialismo histórico contra o qual sempre se manifestaram. Tais
danos envolveram a expulsão de camponeses e indígenas das suas terras e
territórios ancestrais, o assassinato de lideres sociais por sicários a mando
de empresários sem escrúpulos e num contexto de total impunidade, expansão da
fronteira agrícola para além de toda a responsabilidade ambiental, o
envenenamento de populações do campo sujeitas à pulverização aérea de
herbicidas e pesticidas, alguns deles proibidos internacionalmente. Tudo isto
aparentemente mereceu a pena apenas porque a alma da esquerda era bem pequena.
Antis
A política
de esquerda tem de ser conjuntamente anticapitalista, anticolonialista e
antisexista sob pena de não merecer nenhum destes atributos.
Lutas
Obviamente
as diferentes lutas sociais não podem lutar todas contra as diferentes formas
do dominação da mesma maneira e ao mesmo tempo. O fato de as três formas de
dominação não poderem, em geral, reproduzir-se isoladamente umas das outras não
significa que em certos contextos a luta contra uma delas não esteja mais
próxima ou seja mais urgente. O importante é que, por exemplo, ao conduzir uma
luta contra o colonialismo se tenha presente nas bandeiras e articulações de
luta que a dominação colonialista não existe sem a dominação capitalista e
sexista.
Intercultural
A esquerda
do futuro tem de ser intercultural e de se organizar com base na prioridade da
articulação das lutas contra as diferentes dominações como condição necessária
da eficácia das lutas. Como as diferentes tradições de luta criaram as culturas
oposicionais específicas (histórias fundadoras, narrativas e linguagens
próprias, bandeiras de luta agregadoras), a articulação entre
lutas/movimentos/organizações envolverá, em maior ou menor medida, algum
trabalho de tradução intercultural.
Dominação
da natureza e do conhecimento
A
interculturalidade irá introduzir na agenda politica duas formas
dominação-satélite que fornecem ao capitalismo, ao colonialismo e ao
patriarcado, o óleo que lhes permite funcionar com mais legitimidade social: a
dominação da natureza e a dominação causada pelo conhecimento acadêmico
dominante nas nossas universidades e centros de pesquisa. Com isto duas outras
dimensões de injustiça se tornarão visíveis: a injustiça ecológica e a
injustiça cognitiva. Somadas às restantes estas duas formas de injustiça
obrigarão a uma revolução cultural e cognitiva com impacto específico nas
políticas de saúde e de educação. Será então tão possível valorizar os
conhecimentos populares nascidos na luta contra a dominação como deixar de
festejar como heróis da nossa história homens brancos responsáveis por
genocídios, trafico de escravos, roubo de terras. No plano teórico, o marxismo
que continua a ser tão importante para analisar as sociedades do nosso tempo
terá de ser descolonizado e despatriarcalizado para nos poder ajudar a imaginar
e a desejar uma sociedade mais justa e mais digna de que nos está dada a viver
no tempo presente.
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