FANTASMAS DA MEMÓRIA
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NA LINHA FERROVIÁRIA DO SUL
Ponte ferroviária sobre o Rio Xarrama
(Foto Internet, com a devida vénia)
1.
Todas as semanas fazia
aquelas viagens nocturnas: sexta-feira à noite para baixo; domingo à noite para
cima. Ia e vinha no então chamado comboio-correio. Sem pressas, este comboio
parava em todas as estações e apeadeiros. Era reduzido o movimento de
passageiros subindo e descendo, mas era um tanto agitado o movimento de mercadorias.
Eu sempre estava atento quando, no sentido descendente, chegava à
estação de Casa Branca: aí era a corneta anunciando a partida iminente do
comboio e logo após o aviso gritado --- partida para o Algarve!
Toda a gente, respeitando a orientação Norte-Sul, dizia vou para cima ou
para baixo.
Nas noites de luar, quando em
sentido descendente, eu ficava olhando o exterior, logo à saída da Estação
Ferroviária de Casa Branca. Sentia um fascínio muito grande pela ribeira de
Papa Galos e pelo rio Xarrama. Daí o meu persistente desejo de ver e rever as
suas águas quando o comboio os cruzava. A ribeira de Papa Galos, cujo curso vai
de Ocidente para Oriente, é afluente do rio Dgebe e este é afluente do
Odiana, o meu muito amado Odiana, rio mítico onde mais tarde seria construída
uma barragem que é ou será o maior lago artificial da Europa --- a Barragem de
Alqueva. A Barragem de Alqueva é uma das esperanças de uma significativa área
do Alentejo devido à irrigação que pode proporcionar. O Xarrama corre de Nordeste
para Ocidente e é afluente do Sado, rio inteiramente transtagano, que vem da
Serra da Vigia, a Sul, e faz o seu trajecto para Norte até mergulhar no Oceano
na nossa perdida Setúbal. E digo nossa perdida Setúbal como cidadão
transtagano. Esta linda cidade marítima foi extorquida ao Alentejo, vá lá o
Diabo saber o porquê, mistério insolúvel / aberração instalada que
parece ninguém incomodar, da lavra de iluminado(s) que não sei
identificar --- ah, as coisas que eu não sei! --- até porque Setúbal
continua capital de um distrito que inclui vários municípios transtaganos.
No sentido ascendente, quando
regressava a Lisboa, sentia o mesmo fascínio pelas águas. Quando comboio partia
da estação de Viana, ficava esperando pelo Xarrama. Tantas saudades daquelas águas,
nas quais ensaiei as primeiras braçadas da minha incipiente condição de nadador
e alimentei o meu sonho irrealizado de marinheiro! Logo a seguir à
estação de Alcáçovas, lá estavam as águas da Papa Galos me esperando…
2.
Dizia-me um amigo e primo já falecido:
oh, parente, tu tens uma situação mal resolvida com o Guadiana e tanto assim
que insistes em chamar-lhe Odiana.
Eu olhava-o, sorrindo. Quando
ele nasceu, eu tinha quase dez anos. Andei com ele ao colo. Ele sabia o muito
carinho que eu tinha por ele. E pacientemente eu lhe respondia sempre o mesmo:
parente, tu sabes que eu tenho uma predilecção por Espanha. Tanto assim é que,
em Espanha, eu nunca me senti estrangeiro, apenas sinto estar numa terra
vizinha da minha. Afinal, para cá dos Pirenéus, nós somos todos Iberos ou
Hispanos e muitos outros de nós ainda sefarditas e/ou andalusis, mas eu
não gosto nada de imposições e submissões. Em Portugal temos várias palavras
com a mesma raiz: Odiana, Odeleite, Odemira, Odivelas, etc. E diz quem sabe dessas
coisas da etimologia que a palavra árabe Uad (curso de água) entrou no
português como Ode e no castelhano entrou como Guad. Em rigor, o
português Odiana ou o castelhano Guadiana significa Rio Ana. E também
sabemos que a palavra castelhana Guadiana entrou (à força?) no idioma português
depois de 1580, data em que perdemos a independência. Ora, eu até posso
entender que durante os sessenta anos de soberania espanhola tivesse ocorrido
esse desmando, mas já não entendo o porquê desse desmando de soberania espanhola
prosseguir e se enraizar desde que recuperámos a independência nacional, em
1640. Passaram centenas de anos e continuamos assumindo uma palavra estranha e
simultaneamente desprezando e relegando para o arquivo dos arcaísmos a nossa
muito nossa palavra Odiana.
3
Os anos passaram. Agora,
definitivamente nas pátrias terras transtaganas, mais só e chorando as perdas
inerentes à nossa condição de existência efémera, perco-me e encontro-me nas
recordações. Sei que sem memória nada somos, sei-o por experiência. Igualmente
sei que muita gente vai considerar saudosista este texto e outros semelhantes.
Não penso assim. Textos deste género apenas fixam no papel momentos de uma
existência. Momentos merecedores de respeito, de compreensão e consideração,
pela meridiana razão de que a vida merece respeito, a vida em si mesma. O que
fazemos da vida ou o que fazemos na vida são patamares diferentes, estes passíveis de outras leituras, de outras
interpretações, de outros juízos de valor.
José-Augusto de Carvalho
28 de Julgo de 2018.
Alentejo * Portugal