Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

05 - FANTASMAS DA MEMÓRIA * O forasteiro



Diálogos de Café
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O forasteiro

Entrou e sentou-se a uma mesa próxima da porta de entrada do Café. Discretamente, circunvagou o olhar, num reconhecimento rápido, e esperou ser atendido. O empregado aproximou-se e disse, como era de uso: faz favor de dizer. O homem olhou o empregado e pediu: um café e um copo de água, por favor.
Enquanto esperava, observou a rua quase sem movimento àquela hora. Eram quatro da tarde e o sol de Julho ainda ardia. Se o dia tem vinte e quatro horas, em rigor eram dezasseis horas. Não sei deveras por que dividimos o dia em manhã e tarde, mas dividimos e por isso mesmo dizemos quatro da manhã ou da madrugada e quatro da tarde. Ora pois, o Povo é quem faz a língua. O que mais importa é que esteja tudo certo e que nos entendamos.
Sentados a uma outra mesa, dois clientes comentavam a transferência de um futebolista: Dizem que o país vai mal, mas os clubes gastam milhões em contratações. E o mais estranho é que os doentes da clubite não reclamam por salários justos, mas consideram muito natural esta indecência.
Insulto, queres tu dizer, corrigiu o outro. E em contratações, em salários, em prémios…
Verdade, confirmou o primeiro. É só quando um braço de trabalho pede aumento de salário que o patrão e o ministro falam em crise e na tal concertação que nada concerta nem conserta nem harmoniza e só  provoca a divisão sindical, a tal divisão para reinar. E, no final de um arremedo de controvérsia, concluem sempre o mesmo: quando o mar bate na rocha, quem se lixa é o mexilhão.
Estavam de acordo. Difícil era não estarem. Esgotada a conversa ou por afazeres que os reclamassem, pagaram a despesa e saíram.
O empregado acercou-se e quis saber: o senhor está de passagem? Aos dias de semana é isto que vê, não há movimento.
O homem esboçou um sorriso e respondeu: Sim, estou de passagem. Há muito que não vinha aqui. E vejo que tudo está na mesma, poucas ou nenhumas mudanças. Está tudo muito parado e barco parado não faz viagem.
O empregado encolheu os ombros com desânimo e interrogou-se: antes era o que era e agora é o que é…  até há quem afirme que vamos ser um país de serviços, como se algum país conseguisse sobreviver sem agricultura, sem indústria, sem pescas e sei lá que mais!… É isto: antigamente ainda se fazia alguma coisa, agora compramos tudo feito… O senhor ouviu aqueles dois clientes que saíram agora? Eles falam e têm razão, mas não chega ter razão. E quando há jogos na cidade, fazem um sacrifício e lá vão eles ajudar  a alimentar o desaforo que aí vai! Mal vai a coisa quando a bota não dá com a perdigota, que é como diz criticam aceitando ou aceitam criticando. O senhor entende isto?
O homem esboçou um gesto vago e devolveu a pergunta: quem entende isto? Nem sei se é para entender, mas a realidade que temos é esta. Qualquer interrogação parte duma situação concreta. É um passo em frente uma pessoa questionar e questionar-se, mas se se ficar pela interrogação, isto é se não der o segundo passo que será o de transformar ou tentar transformar ou ajudar a transformar a situação questionada de que adianta questionar? Alguém escreveu, não me lembro do nome do autor desta frase: o povo parece um cão que ladra muito, mas morde pouco. E não se trata de um apelo à violência, se bem entendo o alcance da frase. Eu interpreto-a como um apelo à firmeza, a uma atitude de consciente cidadania. E isto porque um cidadão consciente conjuga o pensamento com a postura, porque só ambos se completam.
Deve ser como diz, sim, consentiu o empregado.
Levantando-se, o homem  despediu-se: Agora tenho de ir. Quanto devo? Tenha uma boa tarde.


José-Augusto de Carvalho
25 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal


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