Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

17 - POEMÁRIO + Agnus Dei

NA ESTRADA DE DAMASCO
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Agnus Dei


(Zurbaran, com a devida vénia)




Foi cumprindo calendário

que chegaste à hora certa.

Foi o verbo milenário

presente nesta hora incerta.



Foi mais um aniversário

da Verdade que, desperta,

fustiga, no tempo vário,

a tua igreja deserta.



Igreja que é assembleia

e não o Templo onde outrora

os doutores de outroragora

uiva(va)m em alcateia.



Da treva ainda na cruz,

Agnus Dei, instante luz!





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, Dezembro de 1998.

domingo, 26 de agosto de 2018

17 - POEMÁRIO * Pátria Transtagana

CLAVE DE SUL 

Pátria Transtagana 






Parti quase indefinido, 

a buscar-me algum sentido... 



Não tinha rosa dos ventos 

para o rumo precisar… 

Ousei vagas e tormentos, 

perigos de naufragar… 



Do Algarve passei as passas 

mais as fomes transtaganas. 

À arenga das trapaças 

gritei: vai-te, não me enganas! 



Hoje, não presto, estou velho. 

Voltei p’ra morrer aqui, 

que só dobra o meu joelho 

esta terra onde nasci… 







José-Augusto de Carvalho 
Lisboa, 7 de Setembro de 1996. 
Alentejo, revisão em 25 de Agosto de 2018.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

17 - POEMÁRIO * Abandono


(CLAVE DE SUL) 
Abandono 




Só as árvores nuas 

a tremerem de frio 

no vazio 

destas ruas. 



Uma folha esvoaça, 

derradeira, o fatal movimento, 

sem um ai de doído lamento 

ante a morte que passa. 



Sob o céu enublado, 

só a aragem suspira, 

resistindo à mentira 

do sossego assombrado 



Na parede, cansado, 

o relógio parado. 





José-Augusto de Carvalho 
Lisboa, 7 de Setembro de 1996.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

17 - POEMÁRIO * O lumaréu!


(TEMPO DE SORTILÉGIO) 
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O lumaréu! 





A Leste, um deslumbrante lumaréu 

sacralizando a fronte da manhã! 

Que lindo, assim rosado, fica o Céu! 

Sinto o sabor maduro de romã! 



O Paraíso existe mesmo, sim! 

É este desafio de infinito 

que vejo aqui olhando para mim, 

é este céu que fascinado fito. 



Nem Eva nem Adão eu descortino, 

que nesta dimensão não cabe o mito. 

Aqui só sinto e vejo e me alucino 

com estes horizontes de infinito! 



Rastejam por aqui serpentes várias… 

Nos ramos, baloiçantes, há maçãs… 

Que importa? Eu louvo e canto em minhas árias 

a luz e a cor de todas as manhãs. 



Ah, que ninguém apague o lucilar 

dos astros e o carmim do amanhecer! 

Que eu sinta no meu peito a palpitar, 

agora e sempre, o dia por nascer!... 





José-Augusto de Carvalho 
16 de Agosto de 2018. 
Alentejo * Portugal

02 - POESIA VIVA * Do sonho...


LIRA BRASILEIRA
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Do Sonho…




Enganam-se os ditadores

que, no seu furor medonho,

mandam matar sonhadores

pensando matar o sonho.




Joubert de Araújo Silva

terça-feira, 14 de agosto de 2018

02 - POESIA VIVA * Invocando Orfeu


(...E CONTIGO EU MORRI NESSE DIA!…) 
Invocando Orfeu 




Entardece. 

Nos acordes suaves da aragem, 

vem a morna mensagem 

que o sol-pôr entretece. 



Nos teus olhos tão verdes de mar, 

deslumbrada, a magia da cor 

extinguiu-se esperando o pintor 

que a ousasse pintar. 



Se não houve talento bastante, 

a Pintura perdeu. 

Que este verbo, a sonhar-se de Orfeu, 

te resgate do olvido e te cante!... 



E na dádiva estreme de ser, 

que pulsou no teu peito e no meu, 

há o sonho que nunca morreu, 

porque o sonho não pode morrer… 






José-Augusto de Carvalho 
12 de Agosto de 2018. 
Alentejo * Portugal

domingo, 12 de agosto de 2018

02 - POESIA VIVA * Exortação



CALEIDOSCÓPIO
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Exortação




Não te cales, protesta!

Não te rendas, resiste!

Ou ainda não viste

que essa gente não presta?





José-Augusto de Carvalho
12 de Agosto de 2018.
Alentejo * Portugal

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * As palavras banais


O MEU RIMANCEIRO 
As palavras banais 

(Foto Internet, com a devida vénia)



Quando escrevo, em verdade, o que digo 

são palavras, palavras banais 

de bom-senso, visíveis sinais 

alertando: cuidado, há perigo! 



Nas estradas há curvas danadas, 

há travagens, piões e maus pisos, 

há os gestos de mão bem precisos, 

há manobras e acções desastradas. 



Todos andam sujeitos à pressa 

que nem sabem aonde vai dar… 

Menos sabem onde isto começa 

ou aonde isto vai acabar… 



Falo em vão, eu bem sei, mas insisto, 

que não é blasfemar nem delito 

sobre o nada deixar o meu grito 

que saúda o que existe além disto. 





José-Augusto de Carvalho 
10 de Agosto de 2018. 
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

04 - FANTASMAS DA MEMÓRIA * O Ti'Ernesto


(FANTASMAS DA MEMÓRIA)
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DIÁLOGOS DE CAFÉ
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O Ti’Ernesto


Finais de Julho. Também esta tarde vinha quente. E também o movimento nas ruas era quase inexistente. Não havia clientes quando o homem entrou no Café. O empregado reconheceu-o e veio ao seu encontro com um sorriso de boas-vindas. Por casualidade ou preferência, o homem escolheu a mesma mesa que ocupara havia dias. O empregado desabafou:

-- Como vê, o marasmo continua.

O homem concordou com um movimento afirmativo de cabeça e tentou desvalorizar a situação:

-- É o verão, deve haver gente de férias e a emigração tem sangrado muito estas terras pequenas. Olhe, por favor, traga-me um café e um copo de água.

O empregado foi atender o pedido e passados momentos regressou com a chávena de café e o copo de água. Enquanto o cliente açucarava a bebida, quis saber:

-- O senhor tem muita gente conhecida aqui?

O homem esboçou um sorriso e satisfez a curiosidade do empregado do Café:

-- Os mais velhos, sim; eu ausentei-me há muito e os mais novos já me escapam, mas alguns ainda consigo saber quem são pela pinta…

O empregado lançou um ah exclamativo e, satisfeito, perguntou:

-- Nesse caso, o senhor conhece o Ti’Ernesto! Ele deve ser da sua idade ou um pouco mais velho…

O homem meditou uns segundos e depois confirmou:

-- Sim, sim, conheço, ele tem uns anitos a mais do que eu, mas lembro-me muito bem dele. Como está ele, agora? Continua rijo?

O empregado do Café estava visivelmente satisfeito por o cliente se recordar do Ti’Ernesto e abriu o jogo:

-- Sabe?, eu ouvi uma história dele em período eleitoral, no tempo da outra senhora…Como as coisas eram naquele tempo! Até me custa a acreditar em muitas coisas que se contam…

O homem tentou clarificar as coisas:

-- O meu caro devia ser muito novo quando ocorreu a Revolução dos Cravos, isto no caso de já andar cá neste mundo…

O empregado, assumindo um ar grave:

-- Já era deste mundo, sim senhor, até já andava na Escola; eu nasci em 1966. E lembro-me bem do alvoroço que foi aqui no final do dia 25 de Abril… Toda a miudagem estava contente por ver os adultos contentes. Foi um dia muito bonito para todos.

Nostalgicamente, o homem confirmou:

-- Sim, foi um dia muito bonito!

E assim ficaram largos momentos pensando naquele dia distante e, porventura, pensando também nos sonhos que amanheciam naquele dia… Depois, o empregado insistiu em saber o que sucedera naquele antigo período eleitoral:

-- O senhor desculpe, mas eu gostaria de saber se aquela história do Ti’Ernesto é verdadeira ou não. É que me contaram assim: era um domingo, dia de eleições; ele estava na herdade trabalhando; ainda da parte da manhã, o patrão chegou e disse-lhe: olha, vais à vila entregar esta carta ao senhor Fulano de tal, que está a esta hora na Escola tal. Ti’Ernesto recebeu o sobrescrito e lá foi entregá-lo. O senhor Fulano de tal recebeu o sobrescrito com um obrigado, podes ir… E só dias depois alguém lhe disse: essa foi boa, oh Ernesto! Foste votar e nem deste por nada! Foste bem enrolado, grande palerma!

O homem baixou os olhos e fixou-os na chávena vazia. O empregado percebeu naquele gesto a confirmação da veracidade da história. E num desabafo:

-- Até custa a acreditar!...

O homem meneando a cabeça com tristeza:

-- É verdade, aquele tempo foi mau de mais para se acreditar. E depois, quando tudo parecia poder finalmente entrar nos eixos, veio o ajuste de contas, o silêncio, aqui cúmplice, ali resignado, e este marasmo que parece querer impor-nos um marcar passo perante a História…

O empregado repetiu o ah exclamativo, recebeu o dinheiro que pagava a despesa e olhou o homem que saía sem uma palavra de despedida.



José-Augusto de Carvalho
31 de Julho de 2018.
Alentejo * Portugal