Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

domingo, 25 de dezembro de 2016

02 - POESIA VIVA * O rimance (necessário) do natal





Naquele tempo, Roma impunha o seu Império!

A força do Poder calcava a Palestina!

Só uma paz havia --- a paz do cemitério!

É vil a tirania! E, bárbara, assassina!



Sofria o Povo a dor ferida dos vexames!

Na Pátria que era sua, impunham-se os estranhos!

Se a resistência ousava uns tímidos tentames,

a lei impunha ao Povo agruras e arreganhos.



Desordem ordenada. Absurda impunidade.

Mordiam os mastins. A raiva à luz do dia.

Ninguém pode gritar um viva a liberdade!

O Povo assusta Roma! O Povo que sofria!



Senhora do maior Império deste Mundo!

Tropel de legiões! O medo é violento.

A surda profecia é um andrajo imundo,

lavado de suor, calando a voz do vento.



Cumprindo a lei, lá vai a grávida Maria…

Jerusalém é longe… incerta é a chegada.

Exausto de opressão, o Povo obedecia.

Outras Marias vão, doendo a mesma estrada…



A Natureza-Mãe sorri da tirania.

Tiranos tantos viu que lhes perdeu a conta!

E quantos mais verá se o sangue, cada dia,

insiste em derramar-se em pântanos de afronta?



Herodes é o rei. O títere amestrado.

Roma pagou o preço, em saldo, dos traidores…

Que importa que Maria, exausta, ceda às dores?

Que importa mais um parto assim desesperado?



Cumprida a gravidez, o tempo é de nascer!

Com todo o seu império, a Roma possidente

atónita ficou, sem conseguir deter

o ventre humilde e em dor duma parturiente…



Maria deu à luz em data e hora incertas.

O mês, o dia… pois… isso que importa agora?

Nos basta que pariu… e que, de asas abertas,

um anjo anunciou, na noite, uma ígnea aurora.



Cresceu o seu menino até ao infinito…

Foi mestre e desprezou riquezas e vãs glórias…

Traído e morto foi… num torpe veredicto…

Depois, diversas são, no mito, as trajectórias…





José-Augusto de Carvalho
Alentejo * Portuigal
In “O meu cancioneiro”, Setembro de 2009.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

02 - POESIA VIVA * O analfabeto político


Bertolt Brecht 
*
Analfabeto Político





O pior analfabeto é o analfabeto político.


Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, da renda, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.


O analfabeto político é tão burro que se orgulha e enche o peito dizendo que odeia

a política. 

Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, mentiroso, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

05 - REFLEXÕES * Discorrendo... Da humana condição




Visita-me amiúde a nostalgia do final da minha infância/início da adolescência. Findara o pesadelo da II Grande Guerra (1939-1945); às manifestações de horror perante o holocausto somavam-se as manifestações de horror também pela deflagração das duas bombas atómicas lançadas pela aviação norte-americana sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaky, a 6 e 9 de Agosto de 1945.

Ao tempo, diziam os adultos que tamanha barbaridade era incompreensível pelo desprezo que revelava para com os mais elementares direitos à vida.

Sabemos ou no mínimo intuímos que a guerra é um confronto violento e mortal para muitos que nela intervêm. Quando já não há mais palavras (Rafael Alberti), a violência impõe o seu fatal “diálogo”.

Desde os mais recuados tempos da Humanidade que a guerra semeia sangue e luto e morte.

O mito de Abel e Caim (Genesis) é como uma maldição persistindo em nos demonstrar que o Homem é o assassino do Homem.

Ninguém contesta a universalidade bíblica. Todos nós, dos mais bem informados aos mais mal informados, conhecemos o mito de Abel e Caim como conhecemos os diversos apelos à humana fraternidade: amai-vos uns aos outros / não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.

Nem por fé nem por amor pela Humanidade foi possível fazer medrar no planeta o respeito pela Vida.

Eu sei que só me represento a mim, triste e insignificante condição para ter a veleidade de ser ouvido; mas tenho o direito que ninguém me recusará, assim o espero, de me indignar.

Se a morte não é boa companheira, muito menos é a morte provocada pela violência.

Desde há milénios que a Humanidade anda vestida de luto.

Desde há milénios que medra o rancor e o azedume nos corações dos povos que mais viveram e sofreram morte e luto, violência e humilhação, opressão e desprezo, esbulho e miséria.

Hoje, a Imprensa é um rosário deprimente e, ao mesmo tempo, um diário da nossa vida onde os valores do Amor, da Concórdia, do respeito aparecem violentados.

Será que nos basta fazermos nossas as palavras bíblicas do Nazareno: Perdoai-lhes, Pai, porque eles não sabem o que fazem!

Se sim, perdoamos há milénios e não vemos resultados. Tudo continua como se nada perdoássemos.

Do mundo ressaltam os factos. Os factos são uma acusação que ninguém pode ocultar e a memória dos Homens não permite que o esquecimento os anule.

Daqueles meus velhos tempos de inocência até aos dias de hoje sempre a inquietação esteve na ordem do dia. A Paz e a Concórdia sempre foram como o horizonte --- sempre à vista, nunca ao nosso alcance!

Que nos reste a esperança de que um dia saibamos ser dignos de nós. E aí, certamente, a Paz e a Concórdia se deixarão alcançar.
.
José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 21 de Dezembro de 2015.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

02 - POESIA VIVA * Abril!





Não mais, Abril, serás um simples mês

de um qualquer ano, em maquinal vaivém

de fatal movimento planetário!

Padrão moderno, assim te quis e fez,

repulsa do sarcasmo e do desdém,

o braço instante, estreme e voluntário.



O Tempo em tantos tempos derivado

cumpriu-se no caminho percorrido1

O lenho que deu mar ao mar que havia

voltou ao pátrio solo definido

e o rústico pinheiro, transformado,

ganhou raízes novas em Leiria!



De ciclo em ciclo, o tempo imaginário,

caminheiro, desvenda e traça rumos

e sempre um novo azul fecunda e gera.

Abril é deste tempo asserto e prumos!

Abril será o tempo necessário,

diverso ciclo, a mesma primavera!





José-Augusto de Carvalho
In “Sortilégio”, Lisboa, 198
6

sábado, 10 de dezembro de 2016

04 - FANTASMAS DA MEMÓRIA * A detenção do maltês

Este é o relato.

O maltês, que sempre vinha à feira, ano após ano, deambulava por entre as pessoas, gritando:

Quem muito dorme pouco aprende! Acordem!

Indiferentes, as pessoas fingiam não o ouvir. Uma ou outra murmurava:

É doido, para que lhe havia de dar!

O maltês não se dirigia directamente a ninguém. Se alguém o olhava com curiosidade ou como que mudamente o interpelava, não desviava o olhar nem parava e gritava:

Acordem!

Um dos membros da patrulha da Guarda Nacional Republicana aproximou-se dele e quis saber o motivo da exortação do maltês:

--- Então que se passa?

--- Esta gente parece não sentir como elas lhe mordem, senhor guarda.

--- Ah, sim?!,  ironizou o agente da Autoridade.

--- É como lhe digo, confirmou o maltês.

O guarda olhou interrogativamente o camarada da patrulha:

Que fazer? Aquilo seria perturbação da ordem pública?

O outro guarda opinou:

--- É melhor levarmos o gajo ao comandante, assim ficamos a salvo de qualquer encrenca.

E lá foram, o maltês ladeado pelos guardas, rumo à vila. As pessoas olharam silenciosamente enquanto se afastavam, abrindo alas. As mais novas manifestavam uma curiosidade contida; as mais velhas, uma preocupação apenas perceptível num baixar de olhos ou num reprovador menear de cabeça.

Chegados ao Posto local da GNR, apresentaram-se ao comandante, um 1º. Cabo. Os soldados relataram a conduta do maltês e o motivo da sua detenção.

O comandante concordou com um movimento afirmativo de cabeça e fixou o olhar no detido. Depois, perguntou:

--- O detido ofereceu resistência?

--- Não, senhor! , responderam os guardas, ao mesmo tempo.

--- Na feira, as pessoas sentiram-se incomodadas com a conduta do detido?

--- Não, senhor! , de novo responderam em uníssono os guardas.

O comandante parecia meditar enquanto olhava o maltês. Seguidamente, disse:

--- Bem, vamos ao interrogatório…

Um dos guardas sentou-se à secretária para elaborar o auto e o outro saiu da sala.

--- Como te chamas?,  perguntou o comandante ao maltês.

--- António Almas.

--- Qual é a tua profissão?

--- Trabalhador.

--- Isso somos todos, resmungou comandante. --- Trabalhador de quê? O que fazes na vida?

--- Trabalhador do campo, precisou o maltês.

--- És natural de onde? Isto é, onde nasceste?

--- Não sei ao certo, sei que foi num monte, perto do Odiana, era o que dizia a minha mãe.

--- Sabes ler?

--- Não sei, nunca fui à escola.

--- És casado? Tens filhos?

--- Tive mulher. Morreu ela e a criança ao nascer.

--- Que vieste fazer à feira?

--- Acordar quem dorme?

--- Ah, sim?, estranhou o cabo da guarda.

--- Sim, senhor, quem muito dorme pouco aprende! , sentenciou o maltês.

--- Que queres tu dizer com isso?,  perguntou o cabo da guarda enquanto lançava um olhar cúmplice ao guarda que registava a interrogatório.

--- Quero dizer o que disse, mais nada: quem muito dorme pouco aprende.

--- E onde aprendeste tu isso?, quis saber o cabo da guarda.

O maltês encolheu os ombros.

O cabo da guarda não gostou do encolher de ombros e gritou:

--- Responde ao que perguntei!

Muito sereno, o maltês respondeu:

--- Toda gente sabe isto. Já minha mãe me dizia isso: filho, não fiques dormindo a sesta! Não sejas malandro! Vai procurar trabalho para ganhares para as sopas! Olha que quem muito dorme pouco aprende!

--- Isso é política!, voltou o cabo da guarda a gritar.

--- Isso eu já não sei, disse suavemente o maltês.

Desconcertado, o cabo da guarda olhou o maltês. Seria aquele homem um pobre diabo ou um finório? E recordava a recomendação superior: na dúvida, arrecada-se.

--- Acabou o interrogatório, decidiu. --- Ficas detido e amanhã de manhã segues para a cidade. Lá, o Comando Distrital tratará de ti.



José-Augusto de Carvalho

Alentejo, Novembro de 2016.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

08 - CIDADANIA * Eu não fujo de mim!


Diz quem sabe que “ostracismo é o afastamento (imposto ou voluntário) de um indivíduo do meio social ou da participação em actividades que antes eram habituais.”

Ah, a nossa muita amada Velha Grécia previu tudo! Confunde-me até ao deslumbramento o legado assombroso deste Povo-maior! Foi no Conhecimento! Foi na Poesia! Foi no Teatro! Foi nas Ciências! Foi na Política! Foi no Desporto! Foi no âmbito militar! Terá sido em tudo ou quase tudo que possibilitou o seu tempo!

Uma amiga de quem nada sei há anos, professora de Filosofia, dizia-me frequentemente: pois é, ainda hoje pensamos como a Velha Grécia quis que nós pensássemos!

Eterno aprendiz, sempre me deliciou a máxima sabedoria do velho Sócrates: “Eu só sei que nada sei.” Ah, que bom seria para todos nós, hoje e sempre!, se seguíssemos o esclarecido pensamento de um homem que teve a grandeza de dizer esta frase!

Às vezes, dou comigo a tentar imaginar alguns dos que conhecemos hoje virem reconhecer que nada sabem. Loucura minha, claro. Só um louco poderá imaginar ouvir do cimo do palanque um dos pretensamente iluminados confessar “eu só sei que nada sei”.

Enfim, adiante!

Falava de ostracismo. Sim, do ostracismo que voluntariamente me impus. Quantas vezes a paz interior nos impõe o recolhimento. Eu sei que é um recolhimento sofrido, mas há situações-limite. E quando assim é, mais vale uma atitude drástica a ficar a vida inteira a reclamar como o nosso Sá de Miranda: “Comigo me desavim / sou posto em todo o perigo / não posso viver comigo / não posso fugir de mim.”

No meu ostracismo voluntário, eu não lavei as mãos, como dizem que Pilatos lavou, desinteressando-se, cúmplice, do destino de Jesus. Eu defendi a minha postura e não fui ouvido. E deitar palavras ao vento ou falar com quem não está interessado em me ouvir e me responder não é solução que me sirva. Eu sei que não sou dono da Verdade; mas quem fala comigo ou se recusa a falar comigo também não é dono da Verdade. Para mais, o tempo, esse velho tempo que tudo coloca nos carris devidos, mais cedo ou mais tarde, é minha testemunha abonatória.

Não sou nem um vencedor nem um perdedor. Sou apenas uma pessoa que tem valores a que se dá e causas a que se entrega, sem restrições, sem rendições.

Eu não fujo de mim!

Aqui fica, para que conste e para memória futura.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 9 de Dezembro de 2016.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

05 - REFLEXÕES * Discorrendo: Não faças aos outros...


Sempre integrei as hostes que lutam pela igualdade de direitos e deveres, em todas as circunstâncias, sem excepção, porque a divisão de uma sociedade em classes determina a desigualdade de direitos e deveres.

Conhecemos a dolorosa caminhada do ser humano, uma caminhada de luta e sofrimento, uma caminhada de derrotas e tragédias que empapam de sangue e de luto a nossa memória colectiva.

Quisemos ultrapassar a vergonha do esclavagismo; quisemos ultrapassar a barbárie mais infamante das fogueiras ironicamente designada por autos-de-fé; quisemos ultrapassar o ultraje da tortura física, psicológica e moral e o desprezo pelos elementares valores da inocência e da dignidade da mulher desde menina; quisemos ultrapassar o nepotismo e as suas perversas consequências no âmbito familiar, social e laboral; quisemos, afinal, a justeza dos valores que ambicionam a suprema instauração da fraternidade ou, dito de outra maneira, a instauração do basilar princípio: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.

Passaram milénios e a luta de hoje é a luta de sempre. Que difícil é cumprir a base da harmoniosa convivência humana: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti!

Como é possível, depois de tudo por que passámos, continuar a existir quem se venda por um prato de lentilhas?

Como é possível continuar a existir quem construa a sua ventura com a desgraça do outro? Ou, como escrevi um dia, construir o seu palácio com a fome de um casebre?

Eu sei que pouco valho, que serei um grão de areia do imenso deserto; mas onde estão os que valem muito ou supõem que valem muito? Onde estão eles que não os vejo agir eficazmente pela instauração dos valores supremos do ser humano e da Vida, em sentido amplo? Onde estão?

Sinto uma tristeza profunda ouvindo falar de direitos humanos a quem os espezinha; sinto-me ofendido ouvindo falar de democracia, o tal poder do povo, a quem espezinha os direitos democráticos mais elementares; sinto-me insultado ouvindo falar da Verdade e sem poder perguntar a esses petulantes «o que é a Verdade»?

No ocaso da vida, depois de tantas e tantas decepções, recordo o que ouvia em criança: «cortaram a cabeça a São João Baptista porque ele dizia as verdades». Esta frase e também estoutra «Deus manda ser bom, mas não manda ser parvo» sempre me acompanharam como ditos populares. Hoje, para meu desespero, são máximas comprovadas.

No ocaso da vida, confirmo, pela experiência vivida, que continua válida a sentença: ninguém fará por mim tudo quanto só a mim cabe ou couber fazer. Tal qual!



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 6/12/2016.