Este é o relato.
O maltês, que sempre vinha à feira, ano após
ano, deambulava por entre as pessoas, gritando:
Quem muito dorme pouco aprende! Acordem!
Indiferentes, as pessoas fingiam não o ouvir.
Uma ou outra murmurava:
É doido, para que lhe havia de dar!
O maltês não se dirigia directamente a ninguém.
Se alguém o olhava com curiosidade ou como que mudamente o interpelava, não
desviava o olhar nem parava e gritava:
Acordem!
Um dos membros da patrulha da Guarda Nacional
Republicana aproximou-se dele e quis saber o motivo da exortação do maltês:
--- Então que se passa?
--- Esta gente parece não sentir como elas lhe
mordem, senhor guarda.
--- Ah, sim?!,
ironizou o agente da Autoridade.
--- É como lhe digo, confirmou
o maltês.
O guarda olhou interrogativamente o camarada da
patrulha:
Que fazer? Aquilo seria perturbação da ordem pública?
O outro guarda opinou:
--- É melhor levarmos o gajo ao comandante,
assim ficamos a salvo de qualquer encrenca.
E lá foram, o maltês ladeado pelos guardas,
rumo à vila. As pessoas olharam silenciosamente enquanto se afastavam, abrindo
alas. As mais novas manifestavam uma curiosidade contida; as mais velhas, uma
preocupação apenas perceptível num baixar de olhos ou num reprovador menear de
cabeça.
Chegados ao Posto local da GNR, apresentaram-se
ao comandante, um 1º. Cabo. Os soldados relataram a conduta do maltês e o
motivo da sua detenção.
O comandante concordou com um movimento
afirmativo de cabeça e fixou o olhar no detido. Depois, perguntou:
--- O detido ofereceu resistência?
--- Não, senhor! ,
responderam os guardas, ao mesmo tempo.
--- Na feira, as pessoas sentiram-se
incomodadas com a conduta do detido?
--- Não, senhor! , de
novo responderam em uníssono os guardas.
O comandante parecia meditar enquanto olhava o
maltês. Seguidamente, disse:
--- Bem, vamos ao interrogatório…
Um dos guardas sentou-se à secretária para elaborar o auto e o outro saiu da sala.
--- Como te chamas?, perguntou
o comandante ao maltês.
--- António Almas.
--- Qual é a tua profissão?
--- Trabalhador.
--- Isso somos todos,
resmungou comandante. --- Trabalhador de quê? O que fazes na vida?
--- Trabalhador do campo,
precisou o maltês.
--- És natural de onde? Isto é, onde nasceste?
--- Não sei ao certo, sei que foi num monte,
perto do Odiana, era o que dizia a minha mãe.
--- Sabes ler?
--- Não sei, nunca fui à escola.
--- És casado? Tens filhos?
--- Tive mulher. Morreu ela e a criança ao
nascer.
--- Que vieste fazer à feira?
--- Acordar quem dorme?
--- Ah, sim?,
estranhou o cabo da guarda.
--- Sim, senhor, quem muito dorme pouco
aprende! , sentenciou o maltês.
--- Que queres tu dizer com isso?, perguntou
o cabo da guarda enquanto lançava um olhar cúmplice ao guarda que registava a
interrogatório.
--- Quero dizer o que disse, mais nada: quem
muito dorme pouco aprende.
--- E onde aprendeste tu isso?, quis
saber o cabo da guarda.
O maltês encolheu os ombros.
O cabo da guarda não gostou do encolher de
ombros e gritou:
--- Responde ao que perguntei!
Muito sereno, o maltês respondeu:
--- Toda gente sabe isto. Já minha mãe me dizia
isso: filho, não fiques dormindo a sesta! Não sejas malandro! Vai procurar
trabalho para ganhares para as sopas! Olha que quem muito dorme pouco aprende!
--- Isso é política!, voltou
o cabo da guarda a gritar.
--- Isso eu já não sei, disse
suavemente o maltês.
Desconcertado, o cabo da guarda olhou o maltês.
Seria aquele homem um pobre diabo ou um finório? E recordava a recomendação
superior: na dúvida, arrecada-se.
--- Acabou o interrogatório,
decidiu. --- Ficas detido e amanhã de manhã segues para a cidade. Lá, o
Comando Distrital tratará de ti.
José-Augusto de Carvalho
Alentejo, Novembro de 2016.
Sem comentários:
Enviar um comentário