Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

05 - REFLEXÕES * Discorrendo… Os semi-deuses



1.

Todo o ser vivo, quando nasce, traz a certeza de que irá morrer. Porque assim é, a vida carrega a sua finitude. Não será destino nem sentença inexorável, será apenas da sua condição.

Não creio que esteja errado no que escrevo, mas, previdentemente, apelo: Vinde, amados mestres! Que caia sobre mim a correcção iluminada do vosso saber! E corrigirei feliz a evidência do meu mundo e da finitude que sempre vi, que sempre senti, que sei que me espera!...

Esta nossa condição de mortais demonstra-nos a efemeridade das nossas certezas, das nossas verdades, sempre modeladas conforme os condicionalismos redutores de quem não sabe nem poderá saber além do conhecimento existente e do conhecimento de um porvir próximo que pode enubladamente entrever.



2.

O curso milenar de um rio pode ser alterado por um qualquer inesperado cataclismo. E em segundos ou minutos o que era deixou de ser. O vulcão Vesúvio transformou a bela Pompeia numa cidade fantasma que podemos ver ainda. As convulsões na Natureza, ora destroem, ora criam e recriam na transformação constante de que nos falou Lavoisier.



3.

Hoje, de posse que estamos de poderes destruidores, um momento de raiva demente pode ser responsável pelo dedo que prime o botão que determina o fim de milénios de existência. E depois quem sobreviverá para contar a tragédia?

Hoje como ontem, há lampejos de florescências perfumadas e trevas de ansiedades e de medos.

Hoje como ontem, o tempo é de equilíbrios instáveis e de incertezas dolorosas.



4.

Os grandes do Pensamento vêm legando-nos obras-primas do Conhecimento.

Os grandes da Beleza vêm legando-nos obras-primas em todas as manifestações da Arte.

Os grandes da Ciência vêm-nos legando maravilhas que quase ofuscam o maravilhoso da fantasia.

E tudo isto faz ou parece fazer de nós semi-deuses.

Ah, mas são estes semi-deuses que continuam impotentes perante as erupções da vulgaridade, do obscurantismo, das vaidades e da jactância mais imbecil.

Ah, mas são estes semi-deuses que continuam impotentes perante as mesas sem pão, perante a inocência prostituída, perante a dignidade encarcerada, perante a palavra amordaçada, perante a Justeza reduzida a uma Justiça dispendiosa em demasia para dela se socorrerem os humilhados e ofendidos.

Ah, continua preponderante contra tudo e contra todos a verdade que li no poeta alentejano José Duro: “O oiro de um palácio é a fome de um casebre”.

Ah, de que valem as caridadezinhas, as «boas» intenções, os «bons» corações?

De que nos vale a perigosa recomendação bíblica “dá com a mão direita de modo que a mão esquerda não veja”? Que dar é este em segredo? Que dar é este senão aprovar a existência de quem pode dar a quem tem necessidade de receber? Que dar é este senão a confirmação de que «o oiro de um palácio é a fome de um casebre»?

Ah, que haja palácios, concedo, mas que nunca sejam erguidos pela fome dos casebres.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 30 de Outubro de 2016.

domingo, 23 de outubro de 2016

02 - POESIA VIVA * Balada das chagas






Há vidas que nunca morrem. 

Ninguém as pode matar. 


São chagas do nosso corpo, 


sempre, sempre a supurar. 





Chagas que nenhum unguento 


irá conseguir sarar, 


chagas que um golpe de vento 


sempre, sempre faz sangrar. 





Chagas que são carne viva 


doendo só de as olhar, 


chagas de voz aflitiva 


e sempre, sempre a gritar. 


 


Chagas de um tempo passado 


e a nosso lado a passar, 


chagas de um tempo parado 


sempre, sempre a supurar. 





São chagas de todos nós, 


que ninguém pode calar. 


São chagas sonhando a voz 


que também sabe cantar. 




 


José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 23 de Outubro de 2016 
















sexta-feira, 21 de outubro de 2016

12 - HISTÓRIA * OS DONOS DISTO TUDO



¿Qué ocurre con la Base Naval de Guantánamo, 

en el Oriente de Cuba?




Estados Unidos mantiene ilegalmente una base naval en Cuba contra la voluntad de su pueblo. Esta instalación se encuentra en la Bahía de Guantánamo, una de las mayores de la isla. Dista 64 kilómetros de Santiago de Cuba, la segunda ciudad en importancia del país, y 920 kilómetros de su capital La Habana. Abarca un área de 117,6 kilómetros cuadrados (49,4 de tierra firme y el resto de agua y pantanos). Delimita una línea de costa de 17,5 kilómetros. La bahía posee buenas características en cuanto a profundidad, seguridad y capacidad, pero actualmente carece de importancia estratégica.


La Enmienda Platt, bochornosa ley del Congreso de Estados Unidos impuesta a la primera Constitución cubana a principios del siglo XX, bajo la amenaza de que de no aceptarse la isla permanecería ocupada militarmente, estableció la obligación de ceder porciones de territorio para instalaciones militares del poderoso vecino. No tardó en ponerse en práctica esa exigencia. En diciembre de 1903 Estados Unidos tomó posesión "hasta que lo necesitaren" de la Bahía de Guantánamo, mediante la imposición de un leonino tratado. Desde entonces y durante más de medio siglo fue centro de estímulo a la prostitución, el juego y las drogas, y de un abierto intervencionismo.

Desde el triunfo de la Revolución en 1959, la base ha sido fuente de provocaciones y agresiones, tanto de las tropas del enclave como de contrarrevolucionarios que allí encontraron refugio, muchos de ellos después de cometer crímenes y otras fechorías. En 1961 personal de la Base provocó la muerte a golpes de un obrero cubano y menos de un año más tarde fue secuestrado, torturado y asesinado un humilde pescador. Dos soldados cubanos resultaron asesinados en 1964 y 1966, respectivamente, por disparos realizados desde esa instalación norteamericana. Son muchas las violaciones del espacio aéreo, marítimo y terrestre cometidas, junto a diversas provocaciones como disparos, lanzamiento de piedras, proferir ofensas y otras muchas.

Los ejercicios de las tropas norteamericanas han provocado daños ecológicos irreparables al entorno, incluso han estacionado allí submarinos nucleares. Violando hasta el ilegal tratado que Estados Unidos esgrime para mantener su presencia militar, la base fue convertida en 1994 en campamento de refugiados, en gran parte haitianos, y aún se utiliza ocasionalmente para esto fines. Ante tales hechos Cuba ha asumido invariablemente una actitud firme y serena, no se ha dejado provocar ni intimidar. Los combatientes de la Brigada de la Frontera, unidad de las Fuerzas Armadas Revolucionarias encargada de la defensa de este límite fronterizo artificial, son ejemplo de preparación profesional, valor y disciplina.

Las máximas autoridades cubanas han declarado en muchas ocasiones que no aceptarán ninguna negociación con respecto a este territorio ilegalmente ocupado que no sea la retirada incondicional de las tropas extranjeras allí acantonadas contra la voluntad expresa del pueblo de Cuba. Con igual seriedad el gobierno cubano ha ratificado que no intentará recuperar sus legítimos derechos mediante la fuerza y esperará pacientemente a que la justicia se imponga tarde o temprano.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

02 - POESIA VIVA * Os medos




Tu tens medo e eu também tenho.

Temos todos nossos medos.

Tens medo do que há-de vir

envolto no nevoeiro

da manhã por descobrir?

Ou tens medo do que veio,

do que veio e se instalou

na cama da tua insónia

e te rouba antemanhãs

ruborizadas de luz?



Conta-me os passos que deste

e dize-me o que trouxeste

nos ontens da tua vida!



Mede os passos que vais dar

nos hojes da tua vida

p’ra mais tarde me dizeres

que sonhos de primavera

trouxeste no teu bornal

para perfumar à noite

a mesa da tua ceia!



Só depois, já noite adentro,

me falarás dos teus medos

que sufocam a manhã

que tu temes que amanheça…





José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 20 de Outubro de 2016.




quarta-feira, 19 de outubro de 2016

03 - O MEU RIMANCEIRO * Isto é uma paródia!...

O MEU RIMANCEIRO

(Que viva o cordel!)


*

Isto é uma paródia!...








Consigo trazem sempre a solução


Os donos da verdade são assim


Ficam vaidosos se dizemos sim


Ficam danados se dizemos não






Os donos da verdade não consentem


Sequer que se lhes peça um fundamento


Sequer o mais vulgar aclaramento


Protestam e trejuram que não mentem






E passam a olhar-nos de través


Como se fosse crime perguntar


Como se fosse crime reclamar


Sabermos em que chão pomos os pés






Eu quero que a verdade seja o pão


Pousado sobre a mesa e repartido


E dele comerei o meu quinhão


Que por direito é meu e me é devido.






Que sempre o que é verdade se revele


Sem artifícios e nenhum ornato


Se me dão lebre quero ver-lhe a pele


Gato por lebre nunca no meu prato








José-Augusto de Carvalho

Alentejo, 19 de Outubro de 2016.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

05 - REFLEXÕES * Discorrendo... O tempo passou sobre mim


O tempo passou sobre mim. É passado longínquo a ternura da meninice; é passado distante o verdor primaveril da mocidade; é passado os anos da labuta; é presente a anciania deste meu ocaso da vida. Tudo de acordo com o trajecto vulgar duma existência vulgar. A importância de uma existência não estará nas suas fases (meninice, mocidade, idade adulta e anciania), quando os fados não são por demais adversos e no-las permitem; a importância de uma existência estará nas safras do tal saber de experiência feito.

Na meninice tudo é doce; na idade moça ou na moça idade, de que decorre a palavra linda mocidade, tudo é perfume e deslumbramento de cores numa descuidada interpretação da existência; na idade adulta tudo é a descoberta de dificuldades, de contrariedades, de êxitos efémeros ou nem tanto, de frustrações e fugazes satisfações; a anciania é o pôr-do-sol e o subsequente vislumbrar da noite escura que vem aí.

Mais prosaica ou mais poética, a existência é esta caminhada para nenhures. O período entre a data da chegada e a data da partida é que importa avaliar. Que fiz eu da minha vida? Esta será uma pergunta difícil, mas é de todos nós. Que cada um, cotejados o deve e o haver, encontre o saldo definitivo.

Estarão perdidas as fantasias dos presentes no sapatinho, nas datas convencionais? Estará verificada a impossibilidade de voar metaforicamente no tapete voador com a Xerazade da nossa eleição? Estarão abandonadas desgraçadamente as esperanças na justeza, na meritocracia, no respeito pelo outro, no primado da dignidade? Será uma utopia consagrar de facto e de direito a defesa e a implantação dos direitos humanos?

E a verdade? Ah, esta palavra terrível que passa de boca em boca! Esta palavra ora absoluta, ora objectivamente relativizada. E aqui virá como exemplo porventura paradigmático o episódio bíblico que relata o encontro do Nazareno e Pilatos. O romano terá perguntado ao hebreu: o que é a verdade? E o Nazareno terá ficado mudo. Alguém se questionará sobre o motivo de tal mudez que atravessou dois milénios? Perante a pergunta de o representante máximo do Império Romano na Palestina seria ponderável uma resposta diferente do silêncio? Será que a verdade para o Império Romano ocupante poderia ser igual à verdade da Palestina ocupada?

Há palavras terríveis.

Há perguntas terríveis.

Há silêncios terrivelmente ensurdecedores.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 10 de Outubro de 2016.

sábado, 8 de outubro de 2016

05 - REFLEXÕES * A mão canhestra


Canhestra mão é a minha que teima incorrigível na recusa da História escrita pelos vencedores. Não sei donde vim; não saberei ao certo para onde irei; mas sei onde estou e recuso a subjugação, venha donde vier, esta inventada e reinventada sempre no cadinho onde o embuste amalgama os despojos da violência.

O que ficou soterrado nos escombros? Por que não falam as cinzas? Por que não falam os ossos desconhecidos que resistiram até hoje? O que escondem os fragmentos do que foi destruído pela violência dos vencedores? Quantas palavras, hoje ditas de origem obscura, tiveram a sua definida etimologia? Que pretendem os vencedores apagando outras memórias senão destruir provas e testemunhos de outros saberes?

Hoje, felizmente para todos nós, a Arqueologia tenta, quantas vezes com extrema dificuldade?, encontrar o fio condutor e repor a possível verdade histórica.

Esta caminhada da imposição da força bruta sobre a inteligência, sobre o conhecimento, sobre a diferença, sobre o direito do outro de ser como é e como quer continuar a ser é a prova provada de que a barbárie continua. Até quando?

Situemo-nos neste drama actual dos dias de hoje:

Olhai aquele que foi expulso da sua casa! Quem se indigna? Sem um tecto, sem uma ocupação, sem hoje nem amanhã, vagueia pelos caminhos e logo é apontado como vagabundo, talvez como um perigoso vagabundo…

Olhai aqueles a quem tornaram impossível viver na sua terra! Desenraizados, eles partem e buscam sobreviver noutro lugar. Quem se indigna? Eles só querem viver, mas são apontados como um problema. Eles são um problema? Pois são? E quem responde pelo seu problema de não poderem viver na sua terra?

Há quem reclame dádivas para eles; há quem reclame refúgios para eles; há quem reclame hospitalidade para eles… Tudo manifestações de boa vontade, tudo reflectindo o «nosso» bom coração… Que seja! Mas ninguém parece reclamar para eles a recuperação do que lhes foi extorquido; e muito menos reclamar a punição dos responsáveis pela barbárie.

Olhai, eles são os vencidos! Olhai, eles são os agentes da outra História…



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 8 de Outubro de 2016.


quinta-feira, 6 de outubro de 2016

07 - BRASIL * José Arrabal, Escritor

A PREMONIÇÃO POLÍTICA 

DE MACHADO DE ASSIS



Na última semana de agosto, em 1961... 
(Com o Brasil sob ameaça de uma guerra civil devido à renúncia do Presidente Jânio Quadros e à pretensão golpista dos comandantes das Forças Armadas dispostos a impedir a posse legal do Vice-Presidente João Goulart por ele ser um homem de feitio nacionalista, político popular associado aos interesses dos trabalhadores.)
...nós, na quarta série ginasial, em Mimoso do Sul, certamente nos intrigamos quando a professora de Português entrou na sala e, conforme era seu costume, desta vez escreveu no quadro negro:

“Sou eu a louca?
Ou vocês, os loucos?
Nossa cidade? O país inteiro?
Ou somente alguns?
Quem? Quem?
Vejamos!”

Logo desconfiamos que ela se referia a Jânio Quadros, tipo certamente um tanto biruta, famigerado demagogo que, nas eleições presidenciais do ano anterior, empunhando farsante vassoura de varrer corruptos, enganara e encantara o Brasil.
“Varre varre vassourinha
Varre varre a bandalheira!
..........................................” 
(Eram esses os versos iniciais da sedutora canção moralista e ilusória do falso faxineiro que coube à história desmascarar, mostrar quem realmente era o tipo, lamentável e ridícula presença na vida política do país.) 

Presidente eleito com expressiva votação dos muitos que caíram na traiçoeira conversa de sua demagogia varredora, Jânio Quadros, naquele final de agosto de 1961, surpreendera o país ao se abortar do cargo apenas sete meses após sua animada posse em Brasília. 
(Na verdade com a inesperada renúncia ele pretendia um amalucado golpe de Estado a seu favor e contra a democracia no Brasil.) 

De fato nos enganávamos... 
Eram bem mais interessantes as intenções da mestra ao falar de loucos. 

(Jamais esqueço os tensos dias vividos entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango. Lembro de tudo nos mínimos detalhes. 
No rádio a voz valente e audaciosa do governador gaúcho, Leonel Brizola, denunciando, enfrentando e desmontando a conspiração golpista dos comandantes militares.

Na ruas, boataria sem fim,  temores, revoltas, manifestações populares.  
Jango, no exterior, retornando devagar ao Brasil...  até chegar!  
Enfim, Jango Presidente e o golpe de Estado derrotado... 
... ou adiado, pois  aconteceu tempos mais tarde.
Ocorrências presentes em minha memória.

Na véspera da instigação da mestra em sala de aula, à tardinha Antônio Miguel, lavrador, homem simplório, brincalhão, sempre bem humorado, getulista de nascença e vida inteira, primo de papai, vindo de seu sítio perto da cidade, sem apear do cavalo, gritara da rua defronte nossa casa:

- Primo Juca!  Você não sabe da maior! Vai gostar de saber!
  Papai não demorou a atendê-lo:
- O que foi, Antônio? – perguntou, junto de mim. - Desce do animal, vem jantar conosco. Tem frango com quiabo. Sei que você gosta.   

O primo não desceu do cavalo. 
Rindo, tratou de contar a novidade:
- Negócio seguinte... Diz o povo que o maluco do Jânio, em vez de varrer os corruptos, pegou a grana no cofre do palácio, montou na vassoura dele e que nem bruxa velha fugiu de volta pra São Paulo com a mala cheia. Tá explicada a renúncia! – gargalhou irônico. 
- Pode ser... pode ser... – papai riu da invencionice. – Voz do povo é voz de Deus... – completou sem polemizar, preocupado com as notícias que assombravam o país ameaçado por um golpe de Estado.

- Você acha que Jango toma posse? – quis saber Antônio Miguel.
- Não sei... mas creio que no fim todos se ajeitam e dão posse a Jango. É o certo! – papai conciliou.
- Espero... espero mesmo... Eles têm obrigação de empossar o homem. É o Vice, ué! Calado não fico. Sei me armar, se houver golpe. Tenho em casa duas garruchas novas e minha espingarda está carregada, prontinha para o que der e vier! – retrucou o primo, virando o cavalo, indo na direção de seu sítio, após dado o recado.  
- Não diz bobagem, Antônio! - a tempo papai gritou temendo as conseqüências da tagarelice do parente. – Cuidado com o que fala por aí!) 
     
Na sala de aula, um colega, filho de Seu Ernesto, eletricista da prefeitura, comentou o que a professora escrevera na lousa:
- Louco é o Mata-Sete, Dona Laerce! Doido eu não sou! Nem a senhora!
Todos rimos. 
- Mata-Sete é outra história que merece atenção devida - observou a mestra.

(Melhor explicar: 
Mata-Sete era um tipo grandalhão, velhote moreno cor de índio. 
Às vezes aparecia em Mimoso do Sul sempre agasalhado numa capa gaúcha fizesse frio ou calor. Trazia a cabeça coberta por chapéu negro de grande aba e na mão um comprido cajado, mais um picuá com pertences nos ombros. Tinha os pés calçados em botas de cano longo onde escondia as pontas das pernas da calça de feltro grosso.

Chegava cedinho, antes do amanhecer, após viagem no trem Expresso que vinha do Rio em direção a Vitória, capital do estado.

Da estação ferroviária caminhava até o fim da rua da Serra onde havia uma pedreira de pouca altura encostada num barranco perto da saída da cidade. 
Subia na pedreira e de pé abria as pernas, levantava os braços para o céu e tal qual uma estátua viva punha-se a gritar:
- Eis-me aqui! Eis-me aqui! Eis-me aqui de volta! – gritos graves por mais de hora que despertavam quem ainda dormia.

Disto descia da pedreira e desde então passava alguns dias na cidade pedindo o que fosse – comida, roupa, dinheiro, prendas – com educação e não menor dignidade, imponência que lhe concedia a capa gaúcha.
Ninguém sabia onde dormia. Diziam que na Champruca, a zona de meretrício, o que as putas desmentiam indignadas insinuando que ele era lobisomem. 
De repente Mata-Sete sem aviso prévio sumia...
...até voltar noutra ocasião com seu bem gritado “Eis-me aqui!”.  

Quando criança, temia Mata-Sete. 
Se aparecia na rua ou em casa, logo me escondia, não menos curioso por saber quem eram os tais sete que ele havia matado.

Uns asseguravam que novo ele fora fiel capanga de poderosos fazendeiros, ricaços violentos em Miracema ou Sapucaia, no estado do Rio de Janeiro. 
Que de fato tinha sete mortes nas costas, sete vezes sete, setenta e sete, um número sem fim de infelizes que matou. 
Tudo boato, disse-me-disse carente de prova suficiente que desse razão a meu temor de infância.

Mamãe sossegava minha cisma :
- Pobre homem... É só um pedinte... Acho que nunca matou ninguém – ponderava. - Mata-Sete mais parece nome de inseticida, remédio de matar barata, pernilongo, pulga, mutuca, percevejo, carrapato e piolho. Coisa assim, não mais. 
Desconfiado não ousava uma aproximação.

Adolescente, perdi o medo. Em vão tentei entrevistá-lo certa vez.
Negou-se a contar a história de sua vida que sempre me intrigou e agora só resta inventar. 

Hoje Mata-Sete é personagem de romance inacabado – “Santa Dina de Campos dos Goytacazes” - livro que pretendo terminar de escrever não sei quando. 
Vamos ver...)

Os loucos da professora de Português eram outros... 
Chegaram até nós em setenta páginas datilografadas que a mestra distribuiu aleatoriamente na sala de aula com apenas a primeira página numerada. 

As demais 69 páginas tinham sempre alguma dica que associava uma página anterior à posterior. 
Às vezes uma frase terminava com feliz coerência noutra página. 
Ora uma palavra tinha sua última sílaba na folha seguinte.
Lances assim e não só isso. Verdadeiro quebra-cabeças.

Com animado empenho, viva agitação, divertido corre-corre e felizes descobertas, enfim reunimos as setenta páginas na ordem devida.  
Resolvido o quebra-cabeças, fomos informados de que se tratava do texto de O Alienista, um dos melhores contos de Machado de Assis, narrativa com ampla significação de interesse bastante atual.

Vale sempre ler... 
... essa divertida alegoria histórica dos desatinos do Doutor Simão Bacamarte, “filho da nobreza da terra”, médico alucinado, intransigente moralista que, subsidiado por rendoso financiamento da Câmara de Vereadores, construíra no vilarejo de Itaguaí um hospício de grandes proporções – a Casa Verde – onde, tal qual um juiz inquestionável com sua douta ciência positivista da saúde moral e  mental alheia, passou a recolher no hospício, trancafiar atrás de suas grades e medicar os ditos loucos do povoado conforme seu seletivo e totalitário diagnóstico.
História que nos seduziu desde a montagem do quebra-cabeças agrupando as páginas da narrativa.

Curiosos passamos cinco aulas lendo e comentando o texto do conto.
(Com João Goulart enfim já empossado Presidente da República, sem golpe militar ou guerra civil no Brasil; posse contudo meia-boca, submissa a um Parlamentarismo imposto por mentes reacionárias do país. Parlamentarismo que não durou dois anos completos, rejeitado pela maioria absoluta do povo brasileiro num plebiscito votado em 1963.).

Às vezes as páginas da história eram lidas por nós em voz alta na sala de aula. Tantas outras vezes eram relidas pela própria professora que no decorrer dessas leituras aproveitava seus momentos precisos para falar de Machado de Assis, de sua vida e importância histórica, de sua literatura, contos, romances, poesias.

Na ocasião selecionamos as palavras estranhas de O Alienista (entre outras, longanimidade, estipêndio, pundonoroso, labéu, albardas, louvaminhas, pintalegrete, alvitre, tufularia, enfunado)...
...fomos ao dicionário à cata do significado desses vocábulos antigos já em desusos, mas que mereciam ser conhecidos por nós na aprendizagem da viva mobilidade do idioma.

Também, no curso das aulas, nos inteiramos do ciúme doentio de Bentinho, emDom Casmurro, do ceticismo político do escritor ao tratar dos últimos anos do Império e da passagem para a República, em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, da ironia acentuada nas memórias do defunto Brás Cubas.
Conhecemos o comovente poema de Machado em homenagem a sua esposa Carolina... além de outras tantas proveitosas referências presentes na obra do escritor. Deveras fizemos uma boa viagem pelo universo literário machadiano. 

Lembro que nos divertimos um bocado simpatizados com os ditos loucos vitimados pelas sentenças seletivas do prepotente médico de O Alienista:
...dentre eles, um certo moço que após almoçar “fazia regularmente um discurso acadêmico ornado de tropos, antíteses, de apóstrofes”, ora em Grego, ora em Latim, citando Cícero, Apuleio e Tertuliano...
...mais um tal Falcão que se imaginava uma estrela d’alva, abria os braços e alargava as pernas para dar-se feição de raios estrelares e assim ficava horas esquecidas...
... e um tipo que vivia a proclamar sua grandeza genealógica desde a origem no rei Davi... mais um pobre e generoso homem dado a distribuir de presente a toda gente bois e vacas que não possuía...   

...em meio a tantos presos no hospício de Itaguaí, lá estava o Garcia, suposto louco sempre em silêncio pois caso um dia – no seu entender – dissesse algo“todas as estrelas despejariam do céu e abrasariam a terra”, tal era o poder que recebera de Deus.
- Este, se falante e letrado, seria também escritor... – ousei afirmar em oportuna ocasião na sala de aula.
Os colegas riram um bocado do que eu dissera.
A mestra adiantou-se a meu favor:
- Tem razão! Essas vítimas de Bacamarte são bem imaginosas! 

Passamos a imitar as tais doidices no recreio, em casa ou com colegas nas ruas, o que instigava nossa criatividade. Certa vez três alunos posaram de estrela d’alva instantes antes do início da aula de Matemática, o que intrigou o Professor Humberto Capai, mestre da disciplina, ao chegar e se divertir com a explicação que demos. Louvou a chacota dos alunos. Elogiou o trabalho da professora. Reafirmou que o conto de Machado de Assis era uma obra prima da nossa Literatura. 

O fato é que rapidinho constatamos em O Alienista a abusada prepotência doDoutor Simão Bacamarte para quem todos eram loucos em Itaguaí, desde os mais furiosos e os mais exóticos até os modestos, os tolerantes, os leais, os magnânimos e os sinceros. Todos, enfim... 
...sem exceções na proclamada corrupção psíquica dos habitantes do lugarejo, conforme o médico sentenciava e levava à prisão com seu autoritário mando de juiz.
“Sou eu a louca?
Ou vocês, os loucos?
Nossa cidade? O país inteiro?
Ou somente alguns?
Quem? Quem?
Vejamos!”

- Esse Bacamarte é um Hitler! - comentou certa vez uma colega – Vânia Nassur – em sala de aula. 
- Hitler é um deles. Há muitos Bacamartes infernizando o mundo. Mandantes oportunistas criando bodes-expiatórios por conta de suas moralidades e rendosos preconceitos seletivos, juízos plenos de má fé – completou a professora iluminando para nós a sábia alegoria de O Alienista, narrativa atualíssima com evidência especial nestes nossos dias de 2016 no país. 
Hoje basta ler ou reler o conto para constatar que assim acontece.

Chegamos ao fim da leitura de O Alienista entusiasmados com Machado de Assis, dispostos a conhecer outros contos e até mesmo os romances do escritor. 
Alguns desses contos já eram meus conhecidos, apresentados tempos antes por papai nos saraus de leitura em casa.
Já seus romances principiei a ler após a festa de O Alienista.

Em outubro do mesmo ano li Memorial de Aires numa edição que havia em nossa biblioteca. Foi o primeiro dos romances machadianos lidos por mim, justamente o último escrito por ele, creio que seu melhor livro. 
É obra que sempre releio com permanente encanto.
Encanto que me encaminhou à leitura de Esaú e Jacó, romance associado aoMemorial de Aires.
Gostei menos, mas gostei e reli mais vezes ao longo da vida. 

Na oportunidade seguinte, já nas férias de fim de ano, encorajado por papai, liMemórias Póstumas de Brás Cubas, que se tornou admirável na medida em que avançava lendo. 

Daí, por conseqüência evidente, trouxe Quincas Borba para ler.
Detestei e não fui adiante. Só tempos depois, na Faculdade de Letras, retornei a esse romance com o que nunca combinei, sempre considerei uma chatice. 
(Todo escritor de muitos livros tem um filho feio, até mesmo Machado de Assis. Se tivesse principiado a ler seus livros por Quincas Borba hoje seria outra e talvez menor a minha admiração por suas obras.).

Dom Casmurro também não foi fácil. É trama complexa passível de ambígua avaliação, algo demais para a imaturidade de um leitor adolescente.  
Li, parei de ler, voltei mais de uma vez e mais de uma vez parei...
...mais tarde li e por fim gostei um tanto.

Traz conflito que muito me intriga. 
Insatisfeito com as razões dos ciúmes de Bentinho, desconfio que a bem de certa verdade a grande paixão do ciumento é por seu amigo Escobar... sendo o ciúme, suas suspeitas da traição de Capitu, provável manifestação de mera transferência neurótica, inconsciente projeção psíquica... quem sabe? 
Talvez seja este um dado do enredo que o autor do romance jamais imaginou, entretanto a farta ambigüidade da trama permite ler deste modo a situação do triângulo amoroso, o que enriquece a obra. 

Confesso que considero Capitu um tanto afetada, por demais descrita, adjetivada e forjada num feitio que não me convence. 
Há outras mulheres muito mais interessantes na Literatura de Machado. InclusiveDona Glória, sogra de Capitu, transita com melhor construção do que a nora emDom Casmurro.
No meu entender a mais eficiente personagem do romance é José Dias, o agregado à casa do garoto Bentinho. Sinto firme estima pela bem delineada composição do tipo.

A todo tempo convivo com a obra publicada de Machado de Assis, inclusive com sua poesia, seu teatro, crônicas, críticas e cartas. 
Obra que releio e estudo com justa constância, sobretudo seus contos.
Obra que muito me ensina a ser escritor.

Numa acentuada satisfação, li diversas vezes A Casa Velha, bela novela machadiana injustamente esquecida pela crítica e por leitores. 
Igualmente não desprezo os ditos romances românticos do escritor. Visito as boas biografias e ensaios a seu respeito. 
Meu desencontro é só com Quincas Borba. 
Que fazer?

Inegável é a minha afeição maior pela história de O Alienista.
É texto pleno de Machado com sua aprimorada habilidade de narrador, irônica representação da vida social e ampla visão de mundo. Assim fornece contínua atualidade à trama. 

O conto torna-se desse modo vigorosa expressão alegórica do que ocorre hoje em nossa sociedade entregue a prepotentes manipulações de alguns Bacamartescontemporâneos com suas calúnias midiatizadas, acusações generalizadas, inverdades despidas de provas, prisões judiciais seletivas, duvidosas delações e sentenças ilegais...
...o que favorece e assegura a realização dos projetos neo-liberais de um governo federal carente de legitimidade ... 

...para bem dizer, famigeradas decisões desse governo que tornarão mais pobres os já pobres e enriquecerão muito mais os já muito ricos, com acentuada concentração de rendas, contenção de salários e aposentadorias, repressiva legislação trabalhista, medidas associadas à privatização e entrega de nossas valiosas riquezas estratégicas às grandes corporações estrangeiras sobretudo dos EUA.  

Traiçoeiro espetáculo anti-popular e anti-nacional imposto contra o povo trabalhador brasileiro, devido a pretensões econômicas, ambições políticas internas e externas - perversa situação de uma conspiração golpista - dos que se opõem a um desenvolvimento social autônomo e soberano de nosso país.

Passagem da história do Brasil espelhada em O Alienista, premonitória presença alegórica de Machado de Assis.
Basta ler para confirmar.

Com fraterno abraço,
José Arrabal

7 - BRASIL * José Arrabal, Escritor

DUAS VEZES COM STALIN

sábado, outubro 01, 2016  José Arrabal  

No final de agosto, durante o desfecho do golpe de Estado neofascista que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República, em rápida entrevista política(*) ao escritor e competente repórter Eduardo Maretti para o site Rede Brasil Atual, fui apresentado aos leitores com informações certamente verídicas:
recorda o jornalista que sempre militei contra a ditadura dos golpistas de 1964, sendo até mesmo preso e torturado em quartel do exército...
...acrescenta que sou autor de diversos livros. Destaca dentre essas obras uma biografia do líder soviético Josef Stalin, correta e curiosa lembrança bibliográfica que um tanto me surpreendeu.

Trata-se de trabalho escrito por mim (em parceria com o professor da USP José Carlos Estevão) e publicado há trinta anos, obra distante de minha produção literária mais recente, contos e romances para crianças, jovens e adultos, conforme registrado no tópico “Livros” deste blog.

De fato escrevi algumas biografias: as vidas de Michelangelo Buonarroti (na coleção “Mestres da Pintura”, da Abril Cultural, em 1977) e de Leonardo Da Vinci (na série “Clássicos do Mundo”, da Editora Paulinas, em 2009)...
...além do citado livro a respeito da história política de Josef Stalin, publicado pela Editora Moderna em 1986, na coleção “Biografias” coordenada pelo historiador Carlos Guilherme Mota. Obra antiga bem sucedida com edições expressivas, boa aceitação dos leitores. Livro esgotado, às vezes presente em catálogos de sebos ou do site Estante Virtual, com efetiva procura por seus clientes. 

Vale adiantar que não escrevi apenas uma biografia de Stalin, mas certamente duas.
A primeira dessas obras – escrita em 1974 – infelizmente nunca foi publicada. Trata-se de um original com 500 páginas que perdi devido às intransigências típicas vividas no tempo da ditadura.
A segunda é obra encomendada e publicada pela Editora Moderna, o livro citado por Eduardo Maretti.
Acasos na vida de um escritor.

O PRIMEIRO STALIN
Nas décadas de 1960/70, universitário e jornalista no Rio de Janeiro, amigos sabiam de minhas frequentes leituras e acentuados conhecimentos focados na Revolução Russa de 1917.
Fascinado pelo importante fato histórico, lia, estudava e anotava tudo o que aparecia a respeito do assunto.

Sem sombra de dúvida a Revolução Bolchevista de 1917 - malgrado suas contradições posteriores – é o ponto de partida de uma nova História para a Humanidade.Valiosa lição aos que desejam e se empenham a favor de um mundo pacífico, fraterno e solidário, mundo plenamente diverso da atual barbárie existencial e geopolítica, mal-estar belicista criminoso plantado no planeta pelo imperialismo neoliberal ainda dominante. 

A Revolução Proletária alimentou minha jovem coragem no combate à ditadura, aprimorou meus sentimentos de cidadania e permanente cumplicidade a favor dos interesses das classes sociais populares. Completou minha formação universitária e enriqueceu meu trabalho de jornalista, articulista especializado em política internacional e crítica teatral. Iluminou o sentido de minha visão crítica da realidade.

Em 1974, durante o mandato ditatorial de Ernesto Geisel...
(ocasião em que o regime opressor sinalizava seu esgotamento manifestando a intenção de uma lenta abertura política “gradual e segura” que garantisse uma relativa democratização do país - na verdade, abertura política segura para eles, pois foi também um período de terror, torturas e assassinatos praticados pelo regime, tal qual acontecera no mando da tirania de Garrastazu Médici)
...após temporada no exterior, retornei ao Brasil e a morar no Rio de Janeiro. Jornalista desempregado, vivia modestamente, com dificuldades de trabalho e ganho.

(Produzia traduções de livrecos espanhóis para Editora Monterrey e completava minha remuneração com eventuais artigos de crítica teatral no semanário político-cultural “Opinião”, heróico tablóide de boa lembrança, combativo periódico sempre vitimado pela censura dos militares, publicação valorosa, inteligente presença no combate à ditadura.)

Ciente de meu grande interesse pela Revolução Russa, Roland Corbisier, vizinho amigo, escritor, filósofo e político cassado pelo golpe militar de 1964, convidou-me para escrever a biografia de Josef Stalin em coleção coordenada por ele para uma editora paulista.
Embora o previsto biografado não fosse dos mais admirados por mim entre os revolucionários bolchevistas, a proposta de compra e pagamento dos direitos de publicação da obra pela editora contratante era tentadora.

Num primeiro momento procurei negociar. Fazer uma troca. Em vez de Josef Stalin, sugeri a biografia de Salvador Allende, o generoso presidente chileno deposto em 11 de setembro de 1973 no sanguinário golpe militar comandado por Augusto Pinochet, golpe sabidamente – como de hábito - patrocinado pelos EUA.
- Não será possível! Tem de ser Stalin! – insistiu Roland Corbisier.

Para me convencer adiantou que eu também escreveria, na mesma coleção, a biografia de Benito Mussolini, o ditador fascista italiano.
Forçado pela necessidade de trabalhar, ganhar a vida e não menos tentado pela oportunidade de pesquisar e comparar dois sistemas políticos antagônicos, embora ambos de feitio autoritário, aceitei a empreitada. Assinei o contrato da biografia de Josef Stalin.
Mussolini ficaria para depois de pronta a primeira tarefa contratada.

Trabalhei durante cinco meses de domingo a domingo, desde bem cedo pela manhã até perto da meia-noite.
Li e reli tudo o que pude a propósito do assunto. Outras biografias e livros de ensaios. Isto, durante dois meses.
No terceiro mês, com a disciplina de sempre, principiei a escrever a obra.

Meu plano era historiar a Revolução Russa com recorte acentuado na vida e na controversa presença revolucionária e autoritária de Josef Stalin. Trabalho que resultou num vasto painel bem costurado de opiniões a propósito de sua trajetória política, espécie de grande reportagem baseada em estudos de respeitados historiadores simpáticos ou não ao biografado, obras antigas e recentes publicadas no Brasil e no exterior.

A novidade, no caso, ficou por conta de uma encomenda que fiz, através da livraria carioca Leonardo da Vinci, à editora francesa Seuil/Maspero, de quem comprei um exemplar do recém-publicado “Les Luttes de Classes en URSS – 1917/1923”, escrito pelo historiador Charles Bettelheim, obra polêmica, bastante inteligente e original, ainda inédita no Brasil. Livro que muito contribuiu para aprimorar minha compreensão das contradições geradoras da história soviética.

(Também entrevistei um antigo militante do Partido Comunista Brasileiro, senhor idoso muito gentil, alegre e cheio de histórias.
Exilado político durante o Estado Novo de Vargas, mais de uma vez, em Moscou, ele participara de eventos e recepções com a presença de Stalin.
Em nossa conversa perguntei qual a mais curiosa impressão que guardava do dirigente soviético.
Riu e respondeu bem humorado:
- “Era um tipo atencioso, ouvinte astuto e, acredite, baixinho. Danado de baixinho, criatura. Menor do que Getúlio. Suas fotos, pinturas e estátuas, bastante ajeitadas, me desmentem, entretanto era mesmo um baixinho de nada. Incrível. Quando vi pela primeira vez, custei a acreditar, mas era sim... um gabiru!”
Rimos juntos.)

Todo esse meu disciplinado esforço para produzir o livro hoje mais me parece um milagre: conseguir estudar, escrever e datilografar em cinco meses 500 páginas com ideias e pontos de vista bem articulados para aprontar a obra.
Certamente devo essa conquista à força e à disciplina de minha juventude, somadas à uma justa paixão pela História da Revolução Russa, não propriamente pela vida pessoal e política de Josef Stalin.
Agora, perto de meus 70 anos de idade, mesmo com o auxílio do computador, desconfio que não conseguiria repetir a façanha.

(Necessidade, disciplina e paixão na juventude movem montanhas e cordilheiras, derrubam ditaduras e desqualificam - lançam na lata de lixo da História - os mais bizarros e ilegítimos governos neofascistas de políticos traiçoeiros, golpistas inimigos do povo trabalhador e adversários da soberania nacional.)

Na época, sem dinheiro, não tive com que pagar e tirar uma fotocópia dessas quinhentas páginas da primeira biografia de Josef Stalin que escrevi naqueles cinco meses de 1974, aos 27 anos de idade.
Preferi aguardar a publicação da obra.

Entreguei os originais do livro a Roland Corbisier, que leu, gostou, teceu discursivos elogios e cuidou de levá-los à editora em São Paulo.
O que aconteceu depois foi trágico e não menos prepotente.
O editor paulista não negou boa qualidade ao livro. Alegou, porém, que, caso publicasse a biografia escrita por mim, esta seria recolhida nas livrarias e bancas de jornal pela censura dos militares.

No seu entendimento, o trabalho – “embora bem escrito e bem argumentado” – era obra de um “famigerado comunista-stalinista-trotkista”, obviamente uma afirmação grotesca, ridícula e risível, ignorante delírio despido de qualquer fundamento real. Nada havia no livro que fosse capaz de desencadear sua proibição pela ditadura. A raivosa reação era mera covardia paranoica do editor paulista, seu temor maior do que a fúria das feras de Brasília. 

Na ocasião, Roland Corbisier defendeu-me com seu jeitão ardente e palavroso. Argumentou que meu texto tinha plena fundamentação bibliográfica. Que expressava pontos de vista de outras obras já publicadas e nunca antes recolhidas pela censura do regime. Ameaçou abandonar a coordenação da série.
(Dias depois, no Rio, em nossa irada e tumultuada conversa, impedi que ele tomasse essa decisão.)

Foi um Deus nos acuda. Deus, porém, desta vez não acudiu...
...e o livro jamais foi publicado.
Perdi inclusive a possibilidade de escrever a vida de Benito Mussolini que antes me fora encomendada, mas ainda sem contrato assinado.

De fato a empresa pagou direitinho o devido por conta do trabalho escrito. Bufou, custou, mas pagou.
Por mesquinha vingança, teimou que, pagando o preço contratado, os originais pertenciam a ela e assim fiquei sem qualquer cópia dessa minha primeira e vasta biografia de Stalin.

Tempos depois, numa outra realidade da vida política nacional e já morando em São Paulo, fui à editora disposto a procurar em seus arquivos esses originais perdidos. Na ocasião, um outro editor tratou-me bem, foi cordial, mostrou-se pronto a devolver a obra. 

Tudo em vão. Se a obra perdida estava, perdida ficou, sem que eu saiba onde está, se é que hoje está em algum lugar e não foi destruída pela intolerância daqueles anos de opressão.

O SEGUNDO STALIN
O tempo cuidou de me consolar a perda com a oportunidade de escrever uma nova biografia do controverso líder soviético.
O que é outra história...

Em 1984, o historiador Carlos Guilherme Mota, em reunião na Editora Moderna, solicitou de mim uma biografia para a coleção que coordenava.
Sugeri a vida de Leonardo da Vinci. O que ele recusou.
Queria de mim a biografia de um político.
Sugeri a vida de Simon Bolívar.

Carlos Guilherme Mota adiantou-se afirmando que o Bolívar da coleção seria escrito por ele, o que, até onde sei, lamentavelmente não escreveu.
Percebi que o coordenador da série tinha suas intenções definidas, ciente do que desejava de mim.
Daí perguntei que biografado pretendia me pedir.
- Stalin! É o que quero de você, sem mais nem menos! – foi sua resposta imediata.
Na hora desconfiei que ele conhecia a obra perdida que eu escrevera. Pode ser... jamais confirmei.

Desta vez seria uma biografia de pequeno porte, com cerca de cem páginas, livro paradidático, praticamente um longo verbete a respeito do líder soviético.
Aceitei o convite, muito para compensar a experiência passada que me frustrara sem ver publicado o livro que escrevera.
Também imaginei que seria algo fácil de escrever, embora na ocasião fosse projeto distante de minhas intenções então mais comprometidas com prosa de ficção.
Claro engano. Não foi fácil realizar a empreitada.
O assunto de importância significativa já não me seduzia tanto quanto antes.

Se de algum modo foi prazeroso escrever esse livro, isso se deve à minha opção por seu feitio mais narrativo do que dissertativo, produzindo então um quase pequeno romance cujo cenário histórico é a Revolução Russa, sendo o biografado apresentado tal qual uma espécie de personagem em trama um tanto romanesca. Opção que imagino responsável pela boa receptividade dos leitores.

Ainda que assim fosse, escrever esse “Stalin” publicado pela Editora Moderna foi para mim algo tão árduo que em dado momento...
...(após historiar a bem sucedida e gloriosa liderança do dirigente comunista no enfrentamento e derrota da barbárie nazista durante a Segunda Guerra Mundial - derrota definitiva de Adolf Hitler que a Humanidade eternamente  deve agradecer  à heroica valentia do Exército Vermelho e à firme coragem sem igual do povo soviético)...
...senti-me sem mais condições para continuar o trabalho.

Salvou-me na empreitada o compadre e professor de Filosofia José Carlos Estevão, amigo culto e generoso que cuidou de terminar o livro, narrar com sua inteligente competência os anos finais de Stalin, expor a controversa herança do stalinismo.

DO CACHIMBO À PROFECIA
Dois fatos curiosos me aconteceram nessa trabalheira para escrever o “Stalin” da Editora Moderna. Fatos que permanecem inesquecíveis.

Um deles se deu no decorrer do primeiro capítulo da obra.
Ao narrar a infância e a juventude de Stalin, repentinamente deixei de fumar cigarro. Para bem dizer fiquei umas duas semanas sem fumar.
Bendita situação que não durou mais tempo.

Surpreendentemente passei a usar cachimbo de modo compulsivo.
Logo trouxe para casa alguns cachimbos e outros tantos pacotes de fumo com os mais diversos sabores.
Custei a entender a razão da novidade até perceber que justamente na capa da obra que desta vez mais usava em minhas pesquisas – a excelente biografia de Josef Stalin escrita por Isaac Deutscher – lá estava retratado o governante comunista acendendo atencioso seu emblemático cachimbo...

...o que também despertou em mim a mais justa compreensão do porquê das reclamações da faxineira de casa naqueles dias sempre se queixando de que eu estava “muito mandão e bravo”, bastante diferente da anterior maneira educada e cordial de tratá-la.
Escrever tem dessas coisas.
Poderoso Stalin! Que fazer?

A outra lembrança curiosa que vale aqui registrar é fruto de fato ocorrido em conversas mantidas com José Carlos Estêvão, quando especulávamos a propósito do futuro da União Soviética, sua viabilidade de uma democratização que trouxesse um novo rumo à História do Comunismo, tema muito pertinente naqueles dias (anteriores, mas próximos da “glasnost” e da “perestroika” de Mikhail Gorbatchev), assunto abordado com preciso cuidado no final do livro.

Numa dessas nossas conversas, ponderei que democracia na União Soviética mais parecia um risco, algo praticamente inviável de acontecer muito devido à composição do Estado, uma reunião de povos extremamente diversos - etnias por demais diferenciadas - associados à força por um governo centralizador. Situação marcante e inegável desde a Rússia imperial e autoritária dos czares.

Adiantei que, democratizada, a URSS corria o perigo de se desmembrar em pequenos países sem proporções de potência.
Desconsideramos essa suposição e logo afastamos de nossas mentes a estranha hipótese que mais nos pareceu absurda, embora tenha acontecido justamente assim, poucos anos depois, no decorrer dos passos surpreendentes da História.

Enfim o segundo “Stalin” ficou pronto, foi publicado e bem recebido pelos leitores, inclusive comprado por órgãos públicos para distribuição em bibliotecas e escolas, sem quaisquer desagrados de minha parte, sendo agora, tantos anos depois, até mesmo oportunamente lembrado na recente entrevista para o site Rede Brasil Atual...

...ainda que muito mais me agrade a cuidadosa, volumosa e ilustrada biografia  de Leonardo Da Vinci artista e cientista – uma espécie de sua “autobiografia” imaginada - que escrevi em 2008 para a coleção Clássicos do Mundo da Editora Paulinas.

Na última Bienal de São Paulo, um editor amigo perguntou se eu toparia escrever a biografia de Jorge Andrade, o mais importante dramaturgo brasileiro, autor valioso que estudei e conheço bem.
Embora certo de que Jorge Andrade muito merece a publicação de uma boa biografia - um grande estudo de sua vida e obra - esta não será escrita por mim. Outros cumprirão melhor a tarefa. 

Na ocasião, respondi ao sutil e suposto convite com discreto sorriso:
- Biografia, se tiver de escrever mais alguma, só se for de Merlin, o mago de Arthur – adiantei...
...ciente de que hoje - tempo também de outras tantas urgências históricas, necessárias metamorfoses - lidar com a imaginação da fantasia é bem igualmente significativo, agradável e consequente, justa virtude da Literatura em prosa, drama ou poesia, que desse modo fornece ao escritor e ao leitor vivências criativas, multiplica possibilidades originais, renovados horizontes, presentes para o porvir.  

Com fraterno abraço,
José Arrabal