A PREMONIÇÃO POLÍTICA
DE MACHADO DE ASSIS
Na última semana de agosto, em 1961...
(Com o Brasil sob ameaça de uma guerra civil devido à renúncia do Presidente Jânio Quadros e à pretensão golpista dos comandantes das Forças Armadas dispostos a impedir a posse legal do Vice-Presidente João Goulart por ele ser um homem de feitio nacionalista, político popular associado aos interesses dos trabalhadores.)
...nós, na quarta série ginasial, em Mimoso do Sul, certamente nos intrigamos quando a professora de Português entrou na sala e, conforme era seu costume, desta vez escreveu no quadro negro:
“Sou eu a louca?
Ou vocês, os loucos?
Nossa cidade? O país inteiro?
Ou somente alguns?
Quem? Quem?
Vejamos!”
Logo desconfiamos que ela se referia a Jânio Quadros, tipo certamente um tanto biruta, famigerado demagogo que, nas eleições presidenciais do ano anterior, empunhando farsante vassoura de varrer corruptos, enganara e encantara o Brasil.
“Varre varre vassourinha
Varre varre a bandalheira!
..........................................”
(Eram esses os versos iniciais da sedutora canção moralista e ilusória do falso faxineiro que coube à história desmascarar, mostrar quem realmente era o tipo, lamentável e ridícula presença na vida política do país.)
Presidente eleito com expressiva votação dos muitos que caíram na traiçoeira conversa de sua demagogia varredora, Jânio Quadros, naquele final de agosto de 1961, surpreendera o país ao se abortar do cargo apenas sete meses após sua animada posse em Brasília.
(Na verdade com a inesperada renúncia ele pretendia um amalucado golpe de Estado a seu favor e contra a democracia no Brasil.)
De fato nos enganávamos...
Eram bem mais interessantes as intenções da mestra ao falar de loucos.
(Jamais esqueço os tensos dias vividos entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango. Lembro de tudo nos mínimos detalhes.
No rádio a voz valente e audaciosa do governador gaúcho, Leonel Brizola, denunciando, enfrentando e desmontando a conspiração golpista dos comandantes militares.
Na ruas, boataria sem fim, temores, revoltas, manifestações populares.
Jango, no exterior, retornando devagar ao Brasil... até chegar!
Enfim, Jango Presidente e o golpe de Estado derrotado...
... ou adiado, pois aconteceu tempos mais tarde.
Ocorrências presentes em minha memória.
Na véspera da instigação da mestra em sala de aula, à tardinha Antônio Miguel, lavrador, homem simplório, brincalhão, sempre bem humorado, getulista de nascença e vida inteira, primo de papai, vindo de seu sítio perto da cidade, sem apear do cavalo, gritara da rua defronte nossa casa:
- Primo Juca! Você não sabe da maior! Vai gostar de saber!
Papai não demorou a atendê-lo:
- O que foi, Antônio? – perguntou, junto de mim. - Desce do animal, vem jantar conosco. Tem frango com quiabo. Sei que você gosta.
O primo não desceu do cavalo.
Rindo, tratou de contar a novidade:
- Negócio seguinte... Diz o povo que o maluco do Jânio, em vez de varrer os corruptos, pegou a grana no cofre do palácio, montou na vassoura dele e que nem bruxa velha fugiu de volta pra São Paulo com a mala cheia. Tá explicada a renúncia! – gargalhou irônico.
- Pode ser... pode ser... – papai riu da invencionice. – Voz do povo é voz de Deus... – completou sem polemizar, preocupado com as notícias que assombravam o país ameaçado por um golpe de Estado.
- Você acha que Jango toma posse? – quis saber Antônio Miguel.
- Não sei... mas creio que no fim todos se ajeitam e dão posse a Jango. É o certo! – papai conciliou.
- Espero... espero mesmo... Eles têm obrigação de empossar o homem. É o Vice, ué! Calado não fico. Sei me armar, se houver golpe. Tenho em casa duas garruchas novas e minha espingarda está carregada, prontinha para o que der e vier! – retrucou o primo, virando o cavalo, indo na direção de seu sítio, após dado o recado.
- Não diz bobagem, Antônio! - a tempo papai gritou temendo as conseqüências da tagarelice do parente. – Cuidado com o que fala por aí!)
Na sala de aula, um colega, filho de Seu Ernesto, eletricista da prefeitura, comentou o que a professora escrevera na lousa:
- Louco é o Mata-Sete, Dona Laerce! Doido eu não sou! Nem a senhora!
Todos rimos.
- Mata-Sete é outra história que merece atenção devida - observou a mestra.
(Melhor explicar:
Mata-Sete era um tipo grandalhão, velhote moreno cor de índio.
Às vezes aparecia em Mimoso do Sul sempre agasalhado numa capa gaúcha fizesse frio ou calor. Trazia a cabeça coberta por chapéu negro de grande aba e na mão um comprido cajado, mais um picuá com pertences nos ombros. Tinha os pés calçados em botas de cano longo onde escondia as pontas das pernas da calça de feltro grosso.
Chegava cedinho, antes do amanhecer, após viagem no trem Expresso que vinha do Rio em direção a Vitória, capital do estado.
Da estação ferroviária caminhava até o fim da rua da Serra onde havia uma pedreira de pouca altura encostada num barranco perto da saída da cidade.
Subia na pedreira e de pé abria as pernas, levantava os braços para o céu e tal qual uma estátua viva punha-se a gritar:
- Eis-me aqui! Eis-me aqui! Eis-me aqui de volta! – gritos graves por mais de hora que despertavam quem ainda dormia.
Disto descia da pedreira e desde então passava alguns dias na cidade pedindo o que fosse – comida, roupa, dinheiro, prendas – com educação e não menor dignidade, imponência que lhe concedia a capa gaúcha.
Ninguém sabia onde dormia. Diziam que na Champruca, a zona de meretrício, o que as putas desmentiam indignadas insinuando que ele era lobisomem.
De repente Mata-Sete sem aviso prévio sumia...
...até voltar noutra ocasião com seu bem gritado “Eis-me aqui!”.
Quando criança, temia Mata-Sete.
Se aparecia na rua ou em casa, logo me escondia, não menos curioso por saber quem eram os tais sete que ele havia matado.
Uns asseguravam que novo ele fora fiel capanga de poderosos fazendeiros, ricaços violentos em Miracema ou Sapucaia, no estado do Rio de Janeiro.
Que de fato tinha sete mortes nas costas, sete vezes sete, setenta e sete, um número sem fim de infelizes que matou.
Tudo boato, disse-me-disse carente de prova suficiente que desse razão a meu temor de infância.
Mamãe sossegava minha cisma :
- Pobre homem... É só um pedinte... Acho que nunca matou ninguém – ponderava. - Mata-Sete mais parece nome de inseticida, remédio de matar barata, pernilongo, pulga, mutuca, percevejo, carrapato e piolho. Coisa assim, não mais.
Desconfiado não ousava uma aproximação.
Adolescente, perdi o medo. Em vão tentei entrevistá-lo certa vez.
Negou-se a contar a história de sua vida que sempre me intrigou e agora só resta inventar.
Hoje Mata-Sete é personagem de romance inacabado – “Santa Dina de Campos dos Goytacazes” - livro que pretendo terminar de escrever não sei quando.
Vamos ver...)
Os loucos da professora de Português eram outros...
Chegaram até nós em setenta páginas datilografadas que a mestra distribuiu aleatoriamente na sala de aula com apenas a primeira página numerada.
As demais 69 páginas tinham sempre alguma dica que associava uma página anterior à posterior.
Às vezes uma frase terminava com feliz coerência noutra página.
Ora uma palavra tinha sua última sílaba na folha seguinte.
Lances assim e não só isso. Verdadeiro quebra-cabeças.
Com animado empenho, viva agitação, divertido corre-corre e felizes descobertas, enfim reunimos as setenta páginas na ordem devida.
Resolvido o quebra-cabeças, fomos informados de que se tratava do texto de O Alienista, um dos melhores contos de Machado de Assis, narrativa com ampla significação de interesse bastante atual.
Vale sempre ler...
... essa divertida alegoria histórica dos desatinos do Doutor Simão Bacamarte, “filho da nobreza da terra”, médico alucinado, intransigente moralista que, subsidiado por rendoso financiamento da Câmara de Vereadores, construíra no vilarejo de Itaguaí um hospício de grandes proporções – a Casa Verde – onde, tal qual um juiz inquestionável com sua douta ciência positivista da saúde moral e mental alheia, passou a recolher no hospício, trancafiar atrás de suas grades e medicar os ditos loucos do povoado conforme seu seletivo e totalitário diagnóstico.
História que nos seduziu desde a montagem do quebra-cabeças agrupando as páginas da narrativa.
Curiosos passamos cinco aulas lendo e comentando o texto do conto.
(Com João Goulart enfim já empossado Presidente da República, sem golpe militar ou guerra civil no Brasil; posse contudo meia-boca, submissa a um Parlamentarismo imposto por mentes reacionárias do país. Parlamentarismo que não durou dois anos completos, rejeitado pela maioria absoluta do povo brasileiro num plebiscito votado em 1963.).
Às vezes as páginas da história eram lidas por nós em voz alta na sala de aula. Tantas outras vezes eram relidas pela própria professora que no decorrer dessas leituras aproveitava seus momentos precisos para falar de Machado de Assis, de sua vida e importância histórica, de sua literatura, contos, romances, poesias.
Na ocasião selecionamos as palavras estranhas de O Alienista (entre outras, longanimidade, estipêndio, pundonoroso, labéu, albardas, louvaminhas, pintalegrete, alvitre, tufularia, enfunado)...
...fomos ao dicionário à cata do significado desses vocábulos antigos já em desusos, mas que mereciam ser conhecidos por nós na aprendizagem da viva mobilidade do idioma.
Também, no curso das aulas, nos inteiramos do ciúme doentio de Bentinho, emDom Casmurro, do ceticismo político do escritor ao tratar dos últimos anos do Império e da passagem para a República, em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, da ironia acentuada nas memórias do defunto Brás Cubas.
Conhecemos o comovente poema de Machado em homenagem a sua esposa Carolina... além de outras tantas proveitosas referências presentes na obra do escritor. Deveras fizemos uma boa viagem pelo universo literário machadiano.
Lembro que nos divertimos um bocado simpatizados com os ditos loucos vitimados pelas sentenças seletivas do prepotente médico de O Alienista:
...dentre eles, um certo moço que após almoçar “fazia regularmente um discurso acadêmico ornado de tropos, antíteses, de apóstrofes”, ora em Grego, ora em Latim, citando Cícero, Apuleio e Tertuliano...
...mais um tal Falcão que se imaginava uma estrela d’alva, abria os braços e alargava as pernas para dar-se feição de raios estrelares e assim ficava horas esquecidas...
... e um tipo que vivia a proclamar sua grandeza genealógica desde a origem no rei Davi... mais um pobre e generoso homem dado a distribuir de presente a toda gente bois e vacas que não possuía...
...em meio a tantos presos no hospício de Itaguaí, lá estava o Garcia, suposto louco sempre em silêncio pois caso um dia – no seu entender – dissesse algo“todas as estrelas despejariam do céu e abrasariam a terra”, tal era o poder que recebera de Deus.
- Este, se falante e letrado, seria também escritor... – ousei afirmar em oportuna ocasião na sala de aula.
Os colegas riram um bocado do que eu dissera.
A mestra adiantou-se a meu favor:
- Tem razão! Essas vítimas de Bacamarte são bem imaginosas!
Passamos a imitar as tais doidices no recreio, em casa ou com colegas nas ruas, o que instigava nossa criatividade. Certa vez três alunos posaram de estrela d’alva instantes antes do início da aula de Matemática, o que intrigou o Professor Humberto Capai, mestre da disciplina, ao chegar e se divertir com a explicação que demos. Louvou a chacota dos alunos. Elogiou o trabalho da professora. Reafirmou que o conto de Machado de Assis era uma obra prima da nossa Literatura.
O fato é que rapidinho constatamos em O Alienista a abusada prepotência doDoutor Simão Bacamarte para quem todos eram loucos em Itaguaí, desde os mais furiosos e os mais exóticos até os modestos, os tolerantes, os leais, os magnânimos e os sinceros. Todos, enfim...
...sem exceções na proclamada corrupção psíquica dos habitantes do lugarejo, conforme o médico sentenciava e levava à prisão com seu autoritário mando de juiz.
“Sou eu a louca?
Ou vocês, os loucos?
Nossa cidade? O país inteiro?
Ou somente alguns?
Quem? Quem?
Vejamos!”
- Esse Bacamarte é um Hitler! - comentou certa vez uma colega – Vânia Nassur – em sala de aula.
- Hitler é um deles. Há muitos Bacamartes infernizando o mundo. Mandantes oportunistas criando bodes-expiatórios por conta de suas moralidades e rendosos preconceitos seletivos, juízos plenos de má fé – completou a professora iluminando para nós a sábia alegoria de O Alienista, narrativa atualíssima com evidência especial nestes nossos dias de 2016 no país.
Hoje basta ler ou reler o conto para constatar que assim acontece.
Chegamos ao fim da leitura de O Alienista entusiasmados com Machado de Assis, dispostos a conhecer outros contos e até mesmo os romances do escritor.
Alguns desses contos já eram meus conhecidos, apresentados tempos antes por papai nos saraus de leitura em casa.
Já seus romances principiei a ler após a festa de O Alienista.
Em outubro do mesmo ano li Memorial de Aires numa edição que havia em nossa biblioteca. Foi o primeiro dos romances machadianos lidos por mim, justamente o último escrito por ele, creio que seu melhor livro.
É obra que sempre releio com permanente encanto.
Encanto que me encaminhou à leitura de Esaú e Jacó, romance associado aoMemorial de Aires.
Gostei menos, mas gostei e reli mais vezes ao longo da vida.
Na oportunidade seguinte, já nas férias de fim de ano, encorajado por papai, liMemórias Póstumas de Brás Cubas, que se tornou admirável na medida em que avançava lendo.
Daí, por conseqüência evidente, trouxe Quincas Borba para ler.
Detestei e não fui adiante. Só tempos depois, na Faculdade de Letras, retornei a esse romance com o que nunca combinei, sempre considerei uma chatice.
(Todo escritor de muitos livros tem um filho feio, até mesmo Machado de Assis. Se tivesse principiado a ler seus livros por Quincas Borba hoje seria outra e talvez menor a minha admiração por suas obras.).
Dom Casmurro também não foi fácil. É trama complexa passível de ambígua avaliação, algo demais para a imaturidade de um leitor adolescente.
Li, parei de ler, voltei mais de uma vez e mais de uma vez parei...
...mais tarde li e por fim gostei um tanto.
Traz conflito que muito me intriga.
Insatisfeito com as razões dos ciúmes de Bentinho, desconfio que a bem de certa verdade a grande paixão do ciumento é por seu amigo Escobar... sendo o ciúme, suas suspeitas da traição de Capitu, provável manifestação de mera transferência neurótica, inconsciente projeção psíquica... quem sabe?
Talvez seja este um dado do enredo que o autor do romance jamais imaginou, entretanto a farta ambigüidade da trama permite ler deste modo a situação do triângulo amoroso, o que enriquece a obra.
Confesso que considero Capitu um tanto afetada, por demais descrita, adjetivada e forjada num feitio que não me convence.
Há outras mulheres muito mais interessantes na Literatura de Machado. InclusiveDona Glória, sogra de Capitu, transita com melhor construção do que a nora emDom Casmurro.
No meu entender a mais eficiente personagem do romance é José Dias, o agregado à casa do garoto Bentinho. Sinto firme estima pela bem delineada composição do tipo.
A todo tempo convivo com a obra publicada de Machado de Assis, inclusive com sua poesia, seu teatro, crônicas, críticas e cartas.
Obra que releio e estudo com justa constância, sobretudo seus contos.
Obra que muito me ensina a ser escritor.
Numa acentuada satisfação, li diversas vezes A Casa Velha, bela novela machadiana injustamente esquecida pela crítica e por leitores.
Igualmente não desprezo os ditos romances românticos do escritor. Visito as boas biografias e ensaios a seu respeito.
Meu desencontro é só com Quincas Borba.
Que fazer?
Inegável é a minha afeição maior pela história de O Alienista.
É texto pleno de Machado com sua aprimorada habilidade de narrador, irônica representação da vida social e ampla visão de mundo. Assim fornece contínua atualidade à trama.
O conto torna-se desse modo vigorosa expressão alegórica do que ocorre hoje em nossa sociedade entregue a prepotentes manipulações de alguns Bacamartescontemporâneos com suas calúnias midiatizadas, acusações generalizadas, inverdades despidas de provas, prisões judiciais seletivas, duvidosas delações e sentenças ilegais...
...o que favorece e assegura a realização dos projetos neo-liberais de um governo federal carente de legitimidade ...
...para bem dizer, famigeradas decisões desse governo que tornarão mais pobres os já pobres e enriquecerão muito mais os já muito ricos, com acentuada concentração de rendas, contenção de salários e aposentadorias, repressiva legislação trabalhista, medidas associadas à privatização e entrega de nossas valiosas riquezas estratégicas às grandes corporações estrangeiras sobretudo dos EUA.
Traiçoeiro espetáculo anti-popular e anti-nacional imposto contra o povo trabalhador brasileiro, devido a pretensões econômicas, ambições políticas internas e externas - perversa situação de uma conspiração golpista - dos que se opõem a um desenvolvimento social autônomo e soberano de nosso país.
Passagem da história do Brasil espelhada em O Alienista, premonitória presença alegórica de Machado de Assis.
Basta ler para confirmar.
Com fraterno abraço,
José Arrabal
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