Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

7 - BRASIL * José Arrabal, Escritor

DUAS VEZES COM STALIN

sábado, outubro 01, 2016  José Arrabal  

No final de agosto, durante o desfecho do golpe de Estado neofascista que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República, em rápida entrevista política(*) ao escritor e competente repórter Eduardo Maretti para o site Rede Brasil Atual, fui apresentado aos leitores com informações certamente verídicas:
recorda o jornalista que sempre militei contra a ditadura dos golpistas de 1964, sendo até mesmo preso e torturado em quartel do exército...
...acrescenta que sou autor de diversos livros. Destaca dentre essas obras uma biografia do líder soviético Josef Stalin, correta e curiosa lembrança bibliográfica que um tanto me surpreendeu.

Trata-se de trabalho escrito por mim (em parceria com o professor da USP José Carlos Estevão) e publicado há trinta anos, obra distante de minha produção literária mais recente, contos e romances para crianças, jovens e adultos, conforme registrado no tópico “Livros” deste blog.

De fato escrevi algumas biografias: as vidas de Michelangelo Buonarroti (na coleção “Mestres da Pintura”, da Abril Cultural, em 1977) e de Leonardo Da Vinci (na série “Clássicos do Mundo”, da Editora Paulinas, em 2009)...
...além do citado livro a respeito da história política de Josef Stalin, publicado pela Editora Moderna em 1986, na coleção “Biografias” coordenada pelo historiador Carlos Guilherme Mota. Obra antiga bem sucedida com edições expressivas, boa aceitação dos leitores. Livro esgotado, às vezes presente em catálogos de sebos ou do site Estante Virtual, com efetiva procura por seus clientes. 

Vale adiantar que não escrevi apenas uma biografia de Stalin, mas certamente duas.
A primeira dessas obras – escrita em 1974 – infelizmente nunca foi publicada. Trata-se de um original com 500 páginas que perdi devido às intransigências típicas vividas no tempo da ditadura.
A segunda é obra encomendada e publicada pela Editora Moderna, o livro citado por Eduardo Maretti.
Acasos na vida de um escritor.

O PRIMEIRO STALIN
Nas décadas de 1960/70, universitário e jornalista no Rio de Janeiro, amigos sabiam de minhas frequentes leituras e acentuados conhecimentos focados na Revolução Russa de 1917.
Fascinado pelo importante fato histórico, lia, estudava e anotava tudo o que aparecia a respeito do assunto.

Sem sombra de dúvida a Revolução Bolchevista de 1917 - malgrado suas contradições posteriores – é o ponto de partida de uma nova História para a Humanidade.Valiosa lição aos que desejam e se empenham a favor de um mundo pacífico, fraterno e solidário, mundo plenamente diverso da atual barbárie existencial e geopolítica, mal-estar belicista criminoso plantado no planeta pelo imperialismo neoliberal ainda dominante. 

A Revolução Proletária alimentou minha jovem coragem no combate à ditadura, aprimorou meus sentimentos de cidadania e permanente cumplicidade a favor dos interesses das classes sociais populares. Completou minha formação universitária e enriqueceu meu trabalho de jornalista, articulista especializado em política internacional e crítica teatral. Iluminou o sentido de minha visão crítica da realidade.

Em 1974, durante o mandato ditatorial de Ernesto Geisel...
(ocasião em que o regime opressor sinalizava seu esgotamento manifestando a intenção de uma lenta abertura política “gradual e segura” que garantisse uma relativa democratização do país - na verdade, abertura política segura para eles, pois foi também um período de terror, torturas e assassinatos praticados pelo regime, tal qual acontecera no mando da tirania de Garrastazu Médici)
...após temporada no exterior, retornei ao Brasil e a morar no Rio de Janeiro. Jornalista desempregado, vivia modestamente, com dificuldades de trabalho e ganho.

(Produzia traduções de livrecos espanhóis para Editora Monterrey e completava minha remuneração com eventuais artigos de crítica teatral no semanário político-cultural “Opinião”, heróico tablóide de boa lembrança, combativo periódico sempre vitimado pela censura dos militares, publicação valorosa, inteligente presença no combate à ditadura.)

Ciente de meu grande interesse pela Revolução Russa, Roland Corbisier, vizinho amigo, escritor, filósofo e político cassado pelo golpe militar de 1964, convidou-me para escrever a biografia de Josef Stalin em coleção coordenada por ele para uma editora paulista.
Embora o previsto biografado não fosse dos mais admirados por mim entre os revolucionários bolchevistas, a proposta de compra e pagamento dos direitos de publicação da obra pela editora contratante era tentadora.

Num primeiro momento procurei negociar. Fazer uma troca. Em vez de Josef Stalin, sugeri a biografia de Salvador Allende, o generoso presidente chileno deposto em 11 de setembro de 1973 no sanguinário golpe militar comandado por Augusto Pinochet, golpe sabidamente – como de hábito - patrocinado pelos EUA.
- Não será possível! Tem de ser Stalin! – insistiu Roland Corbisier.

Para me convencer adiantou que eu também escreveria, na mesma coleção, a biografia de Benito Mussolini, o ditador fascista italiano.
Forçado pela necessidade de trabalhar, ganhar a vida e não menos tentado pela oportunidade de pesquisar e comparar dois sistemas políticos antagônicos, embora ambos de feitio autoritário, aceitei a empreitada. Assinei o contrato da biografia de Josef Stalin.
Mussolini ficaria para depois de pronta a primeira tarefa contratada.

Trabalhei durante cinco meses de domingo a domingo, desde bem cedo pela manhã até perto da meia-noite.
Li e reli tudo o que pude a propósito do assunto. Outras biografias e livros de ensaios. Isto, durante dois meses.
No terceiro mês, com a disciplina de sempre, principiei a escrever a obra.

Meu plano era historiar a Revolução Russa com recorte acentuado na vida e na controversa presença revolucionária e autoritária de Josef Stalin. Trabalho que resultou num vasto painel bem costurado de opiniões a propósito de sua trajetória política, espécie de grande reportagem baseada em estudos de respeitados historiadores simpáticos ou não ao biografado, obras antigas e recentes publicadas no Brasil e no exterior.

A novidade, no caso, ficou por conta de uma encomenda que fiz, através da livraria carioca Leonardo da Vinci, à editora francesa Seuil/Maspero, de quem comprei um exemplar do recém-publicado “Les Luttes de Classes en URSS – 1917/1923”, escrito pelo historiador Charles Bettelheim, obra polêmica, bastante inteligente e original, ainda inédita no Brasil. Livro que muito contribuiu para aprimorar minha compreensão das contradições geradoras da história soviética.

(Também entrevistei um antigo militante do Partido Comunista Brasileiro, senhor idoso muito gentil, alegre e cheio de histórias.
Exilado político durante o Estado Novo de Vargas, mais de uma vez, em Moscou, ele participara de eventos e recepções com a presença de Stalin.
Em nossa conversa perguntei qual a mais curiosa impressão que guardava do dirigente soviético.
Riu e respondeu bem humorado:
- “Era um tipo atencioso, ouvinte astuto e, acredite, baixinho. Danado de baixinho, criatura. Menor do que Getúlio. Suas fotos, pinturas e estátuas, bastante ajeitadas, me desmentem, entretanto era mesmo um baixinho de nada. Incrível. Quando vi pela primeira vez, custei a acreditar, mas era sim... um gabiru!”
Rimos juntos.)

Todo esse meu disciplinado esforço para produzir o livro hoje mais me parece um milagre: conseguir estudar, escrever e datilografar em cinco meses 500 páginas com ideias e pontos de vista bem articulados para aprontar a obra.
Certamente devo essa conquista à força e à disciplina de minha juventude, somadas à uma justa paixão pela História da Revolução Russa, não propriamente pela vida pessoal e política de Josef Stalin.
Agora, perto de meus 70 anos de idade, mesmo com o auxílio do computador, desconfio que não conseguiria repetir a façanha.

(Necessidade, disciplina e paixão na juventude movem montanhas e cordilheiras, derrubam ditaduras e desqualificam - lançam na lata de lixo da História - os mais bizarros e ilegítimos governos neofascistas de políticos traiçoeiros, golpistas inimigos do povo trabalhador e adversários da soberania nacional.)

Na época, sem dinheiro, não tive com que pagar e tirar uma fotocópia dessas quinhentas páginas da primeira biografia de Josef Stalin que escrevi naqueles cinco meses de 1974, aos 27 anos de idade.
Preferi aguardar a publicação da obra.

Entreguei os originais do livro a Roland Corbisier, que leu, gostou, teceu discursivos elogios e cuidou de levá-los à editora em São Paulo.
O que aconteceu depois foi trágico e não menos prepotente.
O editor paulista não negou boa qualidade ao livro. Alegou, porém, que, caso publicasse a biografia escrita por mim, esta seria recolhida nas livrarias e bancas de jornal pela censura dos militares.

No seu entendimento, o trabalho – “embora bem escrito e bem argumentado” – era obra de um “famigerado comunista-stalinista-trotkista”, obviamente uma afirmação grotesca, ridícula e risível, ignorante delírio despido de qualquer fundamento real. Nada havia no livro que fosse capaz de desencadear sua proibição pela ditadura. A raivosa reação era mera covardia paranoica do editor paulista, seu temor maior do que a fúria das feras de Brasília. 

Na ocasião, Roland Corbisier defendeu-me com seu jeitão ardente e palavroso. Argumentou que meu texto tinha plena fundamentação bibliográfica. Que expressava pontos de vista de outras obras já publicadas e nunca antes recolhidas pela censura do regime. Ameaçou abandonar a coordenação da série.
(Dias depois, no Rio, em nossa irada e tumultuada conversa, impedi que ele tomasse essa decisão.)

Foi um Deus nos acuda. Deus, porém, desta vez não acudiu...
...e o livro jamais foi publicado.
Perdi inclusive a possibilidade de escrever a vida de Benito Mussolini que antes me fora encomendada, mas ainda sem contrato assinado.

De fato a empresa pagou direitinho o devido por conta do trabalho escrito. Bufou, custou, mas pagou.
Por mesquinha vingança, teimou que, pagando o preço contratado, os originais pertenciam a ela e assim fiquei sem qualquer cópia dessa minha primeira e vasta biografia de Stalin.

Tempos depois, numa outra realidade da vida política nacional e já morando em São Paulo, fui à editora disposto a procurar em seus arquivos esses originais perdidos. Na ocasião, um outro editor tratou-me bem, foi cordial, mostrou-se pronto a devolver a obra. 

Tudo em vão. Se a obra perdida estava, perdida ficou, sem que eu saiba onde está, se é que hoje está em algum lugar e não foi destruída pela intolerância daqueles anos de opressão.

O SEGUNDO STALIN
O tempo cuidou de me consolar a perda com a oportunidade de escrever uma nova biografia do controverso líder soviético.
O que é outra história...

Em 1984, o historiador Carlos Guilherme Mota, em reunião na Editora Moderna, solicitou de mim uma biografia para a coleção que coordenava.
Sugeri a vida de Leonardo da Vinci. O que ele recusou.
Queria de mim a biografia de um político.
Sugeri a vida de Simon Bolívar.

Carlos Guilherme Mota adiantou-se afirmando que o Bolívar da coleção seria escrito por ele, o que, até onde sei, lamentavelmente não escreveu.
Percebi que o coordenador da série tinha suas intenções definidas, ciente do que desejava de mim.
Daí perguntei que biografado pretendia me pedir.
- Stalin! É o que quero de você, sem mais nem menos! – foi sua resposta imediata.
Na hora desconfiei que ele conhecia a obra perdida que eu escrevera. Pode ser... jamais confirmei.

Desta vez seria uma biografia de pequeno porte, com cerca de cem páginas, livro paradidático, praticamente um longo verbete a respeito do líder soviético.
Aceitei o convite, muito para compensar a experiência passada que me frustrara sem ver publicado o livro que escrevera.
Também imaginei que seria algo fácil de escrever, embora na ocasião fosse projeto distante de minhas intenções então mais comprometidas com prosa de ficção.
Claro engano. Não foi fácil realizar a empreitada.
O assunto de importância significativa já não me seduzia tanto quanto antes.

Se de algum modo foi prazeroso escrever esse livro, isso se deve à minha opção por seu feitio mais narrativo do que dissertativo, produzindo então um quase pequeno romance cujo cenário histórico é a Revolução Russa, sendo o biografado apresentado tal qual uma espécie de personagem em trama um tanto romanesca. Opção que imagino responsável pela boa receptividade dos leitores.

Ainda que assim fosse, escrever esse “Stalin” publicado pela Editora Moderna foi para mim algo tão árduo que em dado momento...
...(após historiar a bem sucedida e gloriosa liderança do dirigente comunista no enfrentamento e derrota da barbárie nazista durante a Segunda Guerra Mundial - derrota definitiva de Adolf Hitler que a Humanidade eternamente  deve agradecer  à heroica valentia do Exército Vermelho e à firme coragem sem igual do povo soviético)...
...senti-me sem mais condições para continuar o trabalho.

Salvou-me na empreitada o compadre e professor de Filosofia José Carlos Estevão, amigo culto e generoso que cuidou de terminar o livro, narrar com sua inteligente competência os anos finais de Stalin, expor a controversa herança do stalinismo.

DO CACHIMBO À PROFECIA
Dois fatos curiosos me aconteceram nessa trabalheira para escrever o “Stalin” da Editora Moderna. Fatos que permanecem inesquecíveis.

Um deles se deu no decorrer do primeiro capítulo da obra.
Ao narrar a infância e a juventude de Stalin, repentinamente deixei de fumar cigarro. Para bem dizer fiquei umas duas semanas sem fumar.
Bendita situação que não durou mais tempo.

Surpreendentemente passei a usar cachimbo de modo compulsivo.
Logo trouxe para casa alguns cachimbos e outros tantos pacotes de fumo com os mais diversos sabores.
Custei a entender a razão da novidade até perceber que justamente na capa da obra que desta vez mais usava em minhas pesquisas – a excelente biografia de Josef Stalin escrita por Isaac Deutscher – lá estava retratado o governante comunista acendendo atencioso seu emblemático cachimbo...

...o que também despertou em mim a mais justa compreensão do porquê das reclamações da faxineira de casa naqueles dias sempre se queixando de que eu estava “muito mandão e bravo”, bastante diferente da anterior maneira educada e cordial de tratá-la.
Escrever tem dessas coisas.
Poderoso Stalin! Que fazer?

A outra lembrança curiosa que vale aqui registrar é fruto de fato ocorrido em conversas mantidas com José Carlos Estêvão, quando especulávamos a propósito do futuro da União Soviética, sua viabilidade de uma democratização que trouxesse um novo rumo à História do Comunismo, tema muito pertinente naqueles dias (anteriores, mas próximos da “glasnost” e da “perestroika” de Mikhail Gorbatchev), assunto abordado com preciso cuidado no final do livro.

Numa dessas nossas conversas, ponderei que democracia na União Soviética mais parecia um risco, algo praticamente inviável de acontecer muito devido à composição do Estado, uma reunião de povos extremamente diversos - etnias por demais diferenciadas - associados à força por um governo centralizador. Situação marcante e inegável desde a Rússia imperial e autoritária dos czares.

Adiantei que, democratizada, a URSS corria o perigo de se desmembrar em pequenos países sem proporções de potência.
Desconsideramos essa suposição e logo afastamos de nossas mentes a estranha hipótese que mais nos pareceu absurda, embora tenha acontecido justamente assim, poucos anos depois, no decorrer dos passos surpreendentes da História.

Enfim o segundo “Stalin” ficou pronto, foi publicado e bem recebido pelos leitores, inclusive comprado por órgãos públicos para distribuição em bibliotecas e escolas, sem quaisquer desagrados de minha parte, sendo agora, tantos anos depois, até mesmo oportunamente lembrado na recente entrevista para o site Rede Brasil Atual...

...ainda que muito mais me agrade a cuidadosa, volumosa e ilustrada biografia  de Leonardo Da Vinci artista e cientista – uma espécie de sua “autobiografia” imaginada - que escrevi em 2008 para a coleção Clássicos do Mundo da Editora Paulinas.

Na última Bienal de São Paulo, um editor amigo perguntou se eu toparia escrever a biografia de Jorge Andrade, o mais importante dramaturgo brasileiro, autor valioso que estudei e conheço bem.
Embora certo de que Jorge Andrade muito merece a publicação de uma boa biografia - um grande estudo de sua vida e obra - esta não será escrita por mim. Outros cumprirão melhor a tarefa. 

Na ocasião, respondi ao sutil e suposto convite com discreto sorriso:
- Biografia, se tiver de escrever mais alguma, só se for de Merlin, o mago de Arthur – adiantei...
...ciente de que hoje - tempo também de outras tantas urgências históricas, necessárias metamorfoses - lidar com a imaginação da fantasia é bem igualmente significativo, agradável e consequente, justa virtude da Literatura em prosa, drama ou poesia, que desse modo fornece ao escritor e ao leitor vivências criativas, multiplica possibilidades originais, renovados horizontes, presentes para o porvir.  

Com fraterno abraço,
José Arrabal

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