DUAS VEZES COM STALIN
No final de agosto, durante o desfecho do golpe de Estado
neofascista que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República, em rápida
entrevista política(*) ao escritor e competente repórter Eduardo Maretti para o
site Rede Brasil Atual,
fui apresentado aos leitores com informações certamente verídicas:
recorda o jornalista que
sempre militei contra a ditadura dos golpistas de 1964, sendo até mesmo preso e
torturado em quartel do exército...
...acrescenta que sou
autor de diversos livros. Destaca dentre essas obras uma biografia do líder
soviético Josef Stalin, correta e curiosa lembrança bibliográfica que um tanto
me surpreendeu.
Trata-se de trabalho escrito por mim (em parceria com o
professor da USP José Carlos Estevão) e publicado há trinta anos, obra
distante de minha produção literária mais recente, contos e romances para
crianças, jovens e adultos, conforme registrado no tópico “Livros” deste
blog.
De fato escrevi algumas
biografias: as vidas de Michelangelo Buonarroti (na coleção “Mestres da
Pintura”, da Abril Cultural, em 1977) e de Leonardo Da Vinci (na série
“Clássicos do Mundo”, da Editora Paulinas, em 2009)...
...além do citado livro a
respeito da história política de Josef Stalin, publicado pela Editora Moderna
em 1986, na coleção “Biografias” coordenada pelo historiador Carlos
Guilherme Mota. Obra antiga bem sucedida com edições expressivas, boa aceitação
dos leitores. Livro esgotado, às vezes presente em catálogos de sebos ou do
site Estante Virtual, com
efetiva procura por seus clientes.
Vale adiantar que não
escrevi apenas uma biografia de Stalin, mas certamente duas.
A primeira dessas obras –
escrita em 1974 – infelizmente nunca foi publicada. Trata-se de um original com
500 páginas que perdi devido às intransigências típicas vividas no tempo da
ditadura.
A segunda é obra
encomendada e publicada pela Editora Moderna, o livro citado por Eduardo
Maretti.
Acasos na vida de um
escritor.
O
PRIMEIRO STALIN
Nas décadas de 1960/70,
universitário e jornalista no Rio de Janeiro, amigos sabiam de minhas
frequentes leituras e acentuados conhecimentos focados na Revolução Russa de
1917.
Fascinado pelo importante
fato histórico, lia, estudava e anotava tudo o que aparecia a respeito do
assunto.
Sem sombra de dúvida a
Revolução Bolchevista de 1917 - malgrado suas contradições posteriores – é o
ponto de partida de uma nova História para a Humanidade.Valiosa lição aos que
desejam e se empenham a favor de um mundo pacífico, fraterno e solidário, mundo
plenamente diverso da atual barbárie existencial e geopolítica, mal-estar
belicista criminoso plantado no planeta pelo imperialismo neoliberal ainda
dominante.
A Revolução Proletária
alimentou minha jovem coragem no combate à ditadura, aprimorou meus sentimentos
de cidadania e permanente cumplicidade a favor dos interesses das classes
sociais populares. Completou minha formação universitária e enriqueceu meu
trabalho de jornalista, articulista especializado em política internacional e
crítica teatral. Iluminou o sentido de minha visão crítica da realidade.
Em 1974, durante o mandato
ditatorial de Ernesto Geisel...
(ocasião em que o
regime opressor sinalizava seu esgotamento manifestando a intenção de uma lenta
abertura política “gradual e segura” que garantisse uma relativa democratização
do país - na verdade, abertura política segura para eles, pois foi também um
período de terror, torturas e assassinatos praticados pelo regime, tal qual
acontecera no mando da tirania de Garrastazu Médici)
...após temporada no
exterior, retornei ao Brasil e a morar no Rio de Janeiro. Jornalista
desempregado, vivia modestamente, com dificuldades de trabalho e ganho.
(Produzia traduções de
livrecos espanhóis para Editora Monterrey e completava minha remuneração com
eventuais artigos de crítica teatral no semanário político-cultural “Opinião”,
heróico tablóide de boa lembrança, combativo periódico sempre vitimado pela censura
dos militares, publicação valorosa, inteligente presença no combate à ditadura.)
Ciente de meu grande
interesse pela Revolução Russa, Roland Corbisier, vizinho amigo, escritor,
filósofo e político cassado pelo golpe militar de 1964, convidou-me para
escrever a biografia de Josef Stalin em coleção coordenada por ele para uma
editora paulista.
Embora o previsto
biografado não fosse dos mais admirados por mim entre os revolucionários
bolchevistas, a proposta de compra e pagamento dos direitos de publicação da
obra pela editora contratante era tentadora.
Num primeiro momento
procurei negociar. Fazer uma troca. Em vez de Josef Stalin, sugeri a biografia
de Salvador Allende, o generoso presidente chileno deposto em 11 de setembro de
1973 no sanguinário golpe militar comandado por Augusto Pinochet, golpe
sabidamente – como de hábito - patrocinado pelos EUA.
- Não será possível! Tem
de ser Stalin! – insistiu Roland Corbisier.
Para me convencer adiantou
que eu também escreveria, na mesma coleção, a biografia de Benito Mussolini, o
ditador fascista italiano.
Forçado pela necessidade
de trabalhar, ganhar a vida e não menos tentado pela oportunidade de pesquisar
e comparar dois sistemas políticos antagônicos, embora ambos de feitio
autoritário, aceitei a empreitada. Assinei o contrato da biografia de Josef
Stalin.
Mussolini ficaria para
depois de pronta a primeira tarefa contratada.
Trabalhei durante cinco
meses de domingo a domingo, desde bem cedo pela manhã até perto da meia-noite.
Li e reli tudo o que pude
a propósito do assunto. Outras biografias e livros de ensaios. Isto, durante
dois meses.
No terceiro mês, com a
disciplina de sempre, principiei a escrever a obra.
Meu plano era historiar a
Revolução Russa com recorte acentuado na vida e na controversa presença
revolucionária e autoritária de Josef Stalin. Trabalho que resultou num vasto
painel bem costurado de opiniões a propósito de sua trajetória política,
espécie de grande reportagem baseada em estudos de respeitados historiadores
simpáticos ou não ao biografado, obras antigas e recentes publicadas no Brasil
e no exterior.
A novidade, no caso, ficou
por conta de uma encomenda que fiz, através da livraria carioca Leonardo da Vinci, à editora
francesa Seuil/Maspero, de
quem comprei um exemplar do recém-publicado “Les Luttes de Classes en URSS –
1917/1923”, escrito pelo historiador Charles Bettelheim, obra polêmica,
bastante inteligente e original, ainda inédita no Brasil. Livro que muito
contribuiu para aprimorar minha compreensão das contradições geradoras da
história soviética.
(Também entrevistei um
antigo militante do Partido Comunista Brasileiro, senhor idoso muito gentil,
alegre e cheio de histórias.
Exilado político durante o
Estado Novo de Vargas, mais de uma vez, em Moscou, ele participara de eventos e
recepções com a presença de Stalin.
Em nossa conversa
perguntei qual a mais curiosa impressão que guardava do dirigente soviético.
Riu e respondeu bem
humorado:
- “Era um tipo atencioso,
ouvinte astuto e, acredite, baixinho. Danado de baixinho, criatura. Menor do
que Getúlio. Suas fotos, pinturas e estátuas, bastante ajeitadas, me desmentem,
entretanto era mesmo um baixinho de nada. Incrível. Quando vi pela primeira
vez, custei a acreditar, mas era sim... um gabiru!”
Rimos juntos.)
Todo esse meu disciplinado
esforço para produzir o livro hoje mais me parece um milagre: conseguir
estudar, escrever e datilografar em cinco meses 500 páginas com ideias e pontos
de vista bem articulados para aprontar a obra.
Certamente devo essa
conquista à força e à disciplina de minha juventude, somadas à uma justa paixão
pela História da Revolução Russa, não propriamente pela vida pessoal e política
de Josef Stalin.
Agora, perto de meus 70
anos de idade, mesmo com o auxílio do computador, desconfio que não conseguiria
repetir a façanha.
(Necessidade,
disciplina e paixão na juventude movem montanhas e cordilheiras, derrubam
ditaduras e desqualificam - lançam na lata de lixo da História - os mais
bizarros e ilegítimos governos neofascistas de políticos traiçoeiros, golpistas
inimigos do povo trabalhador e adversários da soberania nacional.)
Na época, sem dinheiro,
não tive com que pagar e tirar uma fotocópia dessas quinhentas páginas da
primeira biografia de Josef Stalin que escrevi naqueles cinco meses de 1974,
aos 27 anos de idade.
Preferi aguardar a
publicação da obra.
Entreguei os originais do
livro a Roland Corbisier, que leu, gostou, teceu discursivos elogios e cuidou
de levá-los à editora em São Paulo.
O que aconteceu depois foi
trágico e não menos prepotente.
O editor paulista não
negou boa qualidade ao livro. Alegou, porém, que, caso publicasse a biografia
escrita por mim, esta seria recolhida nas livrarias e bancas de jornal pela
censura dos militares.
No seu entendimento, o
trabalho – “embora bem escrito e bem argumentado” – era obra de um “famigerado
comunista-stalinista-trotkista”, obviamente uma afirmação grotesca,
ridícula e risível, ignorante delírio despido de qualquer fundamento real. Nada
havia no livro que fosse capaz de desencadear sua proibição pela ditadura. A
raivosa reação era mera covardia paranoica do editor paulista, seu temor maior
do que a fúria das feras de Brasília.
Na ocasião, Roland
Corbisier defendeu-me com seu jeitão ardente e palavroso. Argumentou que meu
texto tinha plena fundamentação bibliográfica. Que expressava pontos de vista
de outras obras já publicadas e nunca antes recolhidas pela censura do regime.
Ameaçou abandonar a coordenação da série.
(Dias depois, no Rio,
em nossa irada e tumultuada conversa, impedi que ele tomasse essa decisão.)
Foi um Deus nos acuda.
Deus, porém, desta vez não acudiu...
...e o livro jamais foi
publicado.
Perdi inclusive a
possibilidade de escrever a vida de Benito Mussolini que antes me fora encomendada,
mas ainda sem contrato assinado.
De fato a empresa pagou
direitinho o devido por conta do trabalho escrito. Bufou, custou, mas pagou.
Por mesquinha vingança,
teimou que, pagando o preço contratado, os originais pertenciam a ela e assim
fiquei sem qualquer cópia dessa minha primeira e vasta biografia de Stalin.
Tempos depois, numa outra
realidade da vida política nacional e já morando em São Paulo, fui à editora
disposto a procurar em seus arquivos esses originais perdidos. Na ocasião, um
outro editor tratou-me bem, foi cordial, mostrou-se pronto a devolver a obra.
Tudo em vão. Se a obra
perdida estava, perdida ficou, sem que eu saiba onde está, se é que hoje está
em algum lugar e não foi destruída pela intolerância daqueles anos de opressão.
O SEGUNDO STALIN
O tempo cuidou de me
consolar a perda com a oportunidade de escrever uma nova biografia do
controverso líder soviético.
O que é outra história...
Em 1984, o historiador
Carlos Guilherme Mota, em reunião na Editora Moderna, solicitou de mim uma
biografia para a coleção que coordenava.
Sugeri a vida de Leonardo
da Vinci. O que ele recusou.
Queria de mim a biografia
de um político.
Sugeri a vida de Simon
Bolívar.
Carlos Guilherme Mota
adiantou-se afirmando que o Bolívar da coleção seria escrito por ele, o que,
até onde sei, lamentavelmente não escreveu.
Percebi que o coordenador
da série tinha suas intenções definidas, ciente do que desejava de mim.
Daí perguntei que
biografado pretendia me pedir.
- Stalin! É o que quero de
você, sem mais nem menos! – foi sua resposta imediata.
Na hora desconfiei que ele
conhecia a obra perdida que eu escrevera. Pode ser... jamais confirmei.
Desta vez seria uma
biografia de pequeno porte, com cerca de cem páginas, livro paradidático,
praticamente um longo verbete a respeito do líder soviético.
Aceitei o convite, muito
para compensar a experiência passada que me frustrara sem ver publicado o livro
que escrevera.
Também imaginei que seria
algo fácil de escrever, embora na ocasião fosse projeto distante de minhas
intenções então mais comprometidas com prosa de ficção.
Claro engano. Não foi
fácil realizar a empreitada.
O assunto de importância
significativa já não me seduzia tanto quanto antes.
Se de algum modo foi
prazeroso escrever esse livro, isso se deve à minha opção por seu feitio mais
narrativo do que dissertativo, produzindo então um quase pequeno romance cujo
cenário histórico é a Revolução Russa, sendo o biografado apresentado tal qual
uma espécie de personagem em trama um tanto romanesca. Opção que imagino
responsável pela boa receptividade dos leitores.
Ainda que assim fosse,
escrever esse “Stalin” publicado pela Editora Moderna foi para mim algo
tão árduo que em dado momento...
...(após historiar a
bem sucedida e gloriosa liderança do dirigente comunista no enfrentamento e
derrota da barbárie nazista durante a Segunda Guerra Mundial - derrota
definitiva de Adolf Hitler que a Humanidade eternamente deve agradecer
à heroica valentia do Exército Vermelho e à firme coragem sem igual do povo
soviético)...
...senti-me sem mais
condições para continuar o trabalho.
Salvou-me na empreitada o
compadre e professor de Filosofia José Carlos Estevão, amigo culto e generoso
que cuidou de terminar o livro, narrar com sua inteligente competência os anos
finais de Stalin, expor a controversa herança do stalinismo.
DO
CACHIMBO À PROFECIA
Dois fatos curiosos me
aconteceram nessa trabalheira para escrever o “Stalin” da Editora
Moderna. Fatos que permanecem inesquecíveis.
Um deles se deu no
decorrer do primeiro capítulo da obra.
Ao narrar a infância e a
juventude de Stalin, repentinamente deixei de fumar cigarro. Para bem dizer
fiquei umas duas semanas sem fumar.
Bendita situação que não
durou mais tempo.
Surpreendentemente passei
a usar cachimbo de modo compulsivo.
Logo trouxe para casa
alguns cachimbos e outros tantos pacotes de fumo com os mais diversos sabores.
Custei a entender a razão
da novidade até perceber que justamente na capa da obra que desta vez mais
usava em minhas pesquisas – a excelente biografia de Josef Stalin escrita por
Isaac Deutscher – lá estava retratado o governante comunista acendendo
atencioso seu emblemático cachimbo...
...o que também despertou
em mim a mais justa compreensão do porquê das reclamações da faxineira de casa
naqueles dias sempre se queixando de que eu estava “muito mandão e bravo”,
bastante diferente da anterior maneira educada e cordial de tratá-la.
Escrever tem dessas coisas.
Poderoso Stalin! Que fazer?
A outra lembrança curiosa
que vale aqui registrar é fruto de fato ocorrido em conversas mantidas com José
Carlos Estêvão, quando especulávamos a propósito do futuro da União Soviética,
sua viabilidade de uma democratização que trouxesse um novo rumo à História do
Comunismo, tema muito pertinente naqueles dias (anteriores, mas próximos da
“glasnost” e da “perestroika” de Mikhail Gorbatchev), assunto abordado com
preciso cuidado no final do livro.
Numa dessas nossas
conversas, ponderei que democracia na União Soviética mais parecia um risco,
algo praticamente inviável de acontecer muito devido à composição do Estado,
uma reunião de povos extremamente diversos - etnias por demais diferenciadas -
associados à força por um governo centralizador. Situação marcante e inegável
desde a Rússia imperial e autoritária dos czares.
Adiantei que,
democratizada, a URSS corria o perigo de se desmembrar em pequenos países sem
proporções de potência.
Desconsideramos essa
suposição e logo afastamos de nossas mentes a estranha hipótese que mais nos
pareceu absurda, embora tenha acontecido justamente assim, poucos anos depois,
no decorrer dos passos surpreendentes da História.
Enfim o segundo “Stalin” ficou pronto, foi publicado e bem
recebido pelos leitores, inclusive comprado por órgãos públicos para
distribuição em bibliotecas e escolas, sem quaisquer desagrados de minha parte,
sendo agora, tantos anos depois, até mesmo oportunamente lembrado na recente
entrevista para o site Rede
Brasil Atual...
...ainda que muito mais me
agrade a cuidadosa, volumosa e ilustrada biografia de Leonardo Da Vinci
artista e cientista – uma espécie de sua “autobiografia” imaginada - que
escrevi em 2008 para a coleção Clássicos
do Mundo da Editora Paulinas.
Na última Bienal de São
Paulo, um editor amigo perguntou se eu toparia escrever a biografia de Jorge
Andrade, o mais importante dramaturgo brasileiro, autor valioso que estudei e
conheço bem.
Embora certo de que Jorge
Andrade muito merece a publicação de uma boa biografia - um grande estudo de
sua vida e obra - esta não será escrita por mim. Outros cumprirão melhor a
tarefa.
Na ocasião, respondi ao
sutil e suposto convite com discreto sorriso:
- Biografia, se tiver de
escrever mais alguma, só se for de Merlin, o mago de Arthur – adiantei...
...ciente de que hoje -
tempo também de outras tantas urgências históricas, necessárias metamorfoses -
lidar com a imaginação da fantasia é bem igualmente significativo, agradável e
consequente, justa virtude da Literatura em prosa, drama ou poesia, que desse
modo fornece ao escritor e ao leitor vivências criativas, multiplica
possibilidades originais, renovados horizontes, presentes para o porvir.
Com fraterno abraço,
José Arrabal
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