Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O Fado

ESTA LIRA DE MIM!...

*

O Fado





Cumprida a rotação,

marcava mais um dia o calendário.

E sempre este fadário

de versos na tristeza da canção. 



É noite, agora? Ou dia? Quem o sabe?

Dolentes guitarradas

gemem desesperadas

no tempo do silêncio que lhes cabe. 



A voz se solta rouca e chora o canto

fatal do sofrimento,

enquanto o xaile negro, em negro manto,

enluta o desespero do lamento. 



E assim, no desencontro da existência,

monótona se cumpre a rotação,

sofrida no fadário da cadência

que marca o calendário da canção. 





José-Augusto de Carvalho
6 de Março de 2009.
Viana * Évora * Portugal


sábado, 26 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O encontro


TEMPO DE SORTILÉGIO

*

O encontro 



Este texto, agora terminado, corresponde a uma promessa incumprida 
que fiz a Lizete Abrahão, em Porto Alegre, na primavera de 2002. 
Que me valha o conforto de a Lizete ter lido grande parte dele. 





No silêncio, adormece o sossego. 

O deserto parece assombrado. 

O meu branco albornoz aconchego 

e caminho no tempo parado. 



É de pedras o solo que piso. 

Pedras soltas, dispersas, vadias… 

Uma sombra, e tão mal a diviso, 

me garante que não há vigias. 



Nem sinal de uma entrada na gruta. 

É enorme o lendário rochedo! 

Meu olhar, sob a noite, perscruta. 

Sinto o frio suado do medo. 



Frente a frente, o Passado e o Presente. 

Balbucio as palavras da senha 

e, ante mim, a surgir, de repente, 

a verdade que a lenda desenha. 



Devagar, passo a passo, franqueio 

o portal que se abriu por encanto. 

Circunvago o olhar, sem receio, 

e respiro um Passado de espanto. 



Das pegadas de Ali nem vestígio. 

Das riquezas da lenda nem rastro. 

Entre o ser e o não-ser, o litígio 

da firmeza do vento e do mastro. 



E contrárias as forças serão 

das firmezas do mastro e do vento, 

quando a vela se enfuna evasão 

e nas ondas se vai movimento? 



E se falo de mar, o Simbad, 

da penumbra do tempo lendário, 

vem velar, nos jardins de Bagdad, 

o estertor do ladrão sanguinário. 



Mas eu quero bem junto de mim, 

neste transe de angústia e de espera, 

a lanterna que foi de Aladim, 

inventando no caos a quimera. 



Lá do fundo da gruta, o ruído 

se aproxima de uns passos seguros… 

Não é sonho, é alguém decidido 

que regressa aos instantes futuros. 



Aproxima-se um velho de mim. 

Traz nas mãos a lanterna apagada. 

Reconheço o lendário Aladim 

no seu rosto de barba nevada. 



Com um gesto me manda sentar 

nas areias ocultas da gruta. 

Só um raio de níveo luar 

nos observa em silêncio de escuta. 



Quando o velho me fala, estremeço: 

--- Alá seja contigo, meu filho! 

Do Passado que sou reconheço, 

no Presente que fores, o trilho. 



Quando intento a resposta, num gesto 

me remete ao silêncio. Obedeço. 

E prossegue num claro requesto 

de uma angústia em que me reconheço: 





--- Na magia sem tempo da vida, 

são um só o Passado e o Presente. 

Somos ambos, na espera sofrida, 

o caminho de nós, livremente. 



O murmúrio do Tigre se expande 

pelas terras do Fértil Crescente. 

E não há quem o cale ou lhe mande 

suspender ou mudar a corrente. 



Nestas terras de sonhos e lendas, 

sob um céu polvilhado de estrelas, 

há milénios que erguemos as tendas 

na ilusão de senti-las e tê-las. 



Neste berço nasceu Abrahão, 

que foi pai de Ismael e de Isaque… 

Novas hordas de hodierna agressão 

nos flagelam em bárbaro ataque. 



É o Inferno de portas abertas. 

Jorra o sangue na fúria ululante, 

desenhando as auroras incertas 

neste céu cada vez mais distante. 



Talvez seja a sentença já vista 

do martírio em Sodoma e Gomorra: 

p’ra que a vida na graça persista 

é preciso que a mácula morra! 



Sem palavras, no tempo medito: 

no que fomos, no quanto sonhámos… 

E pergunto-me, incrédulo e aflito: 

onde foi que nós todos errámos? 



Aladim, em silêncio, se afasta. 

Lá vai ele, lanterna na mão. 

Só, na dúvida que me desgasta, 

sinto a dor que devasta o meu chão. 




José-Augusto de Carvalho 
Porto Alegre, Primavera de 2002 
Alentejo, Janeiro de 2019.

sábado, 19 de janeiro de 2019

02 - POESIA VIVA * Memória do tempo parado


CANTO REVELADO 


Memória do tempo parado 









Para os Capitães que sonharam e continuam a sonhar Abril 





E tanto por dizer ficou estrangulado 

nas malhas do silêncio azul e da clausura! 

Do risco de falar ao de ficar calado, 

medrava em cada olhar o esgar duma censura. 



Era o tempo parado 

dos altares pagãos 

onde foi imolado 

por atávicas mãos 

o devir revelado. 



Difusa, em cada esquina, a sombra desenhava, 

na mancha que sangrava as pedras da calçada, 

o desvario insone e plúmbeo procurava 

a brisa que trazia a nova perfumada. 



Era o tempo parado 

dos desígnios fatais 

dum fantasma danado 

a negar os sinais 

do devir revelado. 



Ah, meu amigo, e tu, nos longes por haver, 

ainda do silêncio infausto tão distante, 

vivias, no mistério, a sedução de ser 

um astro mais do céu a lucilar errante. 



Era o tempo parado 

da vergonha de nós 

no estertor resignado 

e no medo sem voz, 

a render-se calado. 



Chegaste, agora, são e salvo, e o tempo é teu! 

Bem-vindo sejas! Vem, no tempo que em ti cresce, 

ser mais um cravo-Abril, que o dia amanheceu, 

e deixa-te orvalhar de auroras e floresce! 



José-Augusto de Carvalho 
19 de Maio de 2009. 
Alentejo * Portugal

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

08 - CIDADANIA * O regresso ao caos?

NA PALAVRA É QUE VOU… 

O regresso ao caos? 





A desvalorização ostensiva de tudo o que não nos afecta directamente, a indiferença pela amargura do outro, o umbigocentrismo de tantos e tantos, é uma mazela social purulenta que reclama tratamento imediato. 

O humanitarismo religioso e profano definha e estás prestes a agonizar. 

Viva eu! 

Viva eu e os outros que se danem! 

Ai de mim se não for eu! 

O objectivo é cada um de per si safar-se ou virar-se como puder? 

Será que cada um de nós vive numa ilha deserta? 

Será que cada um de nós não é parte de um contexto social onde há direitos e deveres indeclináveis? 

Será mesmo uma realidade consagrada que “a pimenta no ânus do outro é refresco para mim”? (Reconheço a grosseria desta “sabedoria” dita popular, mas a sua brutalidade é deveras ilustrativa e soa como um grito de alarme.) 

E chegámos aqui depois de séculos e séculos de doutrinação religiosa; depois de Humanismos e Iluminismos; depois da Liberdade, Fraternidade e Igualdade da Grande Revolução Burguesa de 1789, em França; depois de manifestos e mais manifestos; depois de Declarações de Direitos e Deveres, da ONU; depois de Constituições Políticas em vigor proclamando o Direito, a Justiça, a Defesa da Vida, a Concórdia e a Paz… e eu sei lá mais o quê! 

Os raros reconhecidos como salvadores do ser humano, da fauna e da flora, do planeta que é o nosso lar maior, disseram e demonstraram a justeza dos seus ensinamentos. E que lhes sucedeu? Foram perseguidos, foram presos, foram condenados, foram sacrificados com requintes de crueldade como se fossem perigosos malvados a abater sem piedade. O mandamento “Não matarás” é uma das muitas utopias… 

Afinal, o que somos? 

Afinal, o que queremos ser? 

Todos os dias, a todas as horas proclamamos uma única revelação --- a perdição. 

Herdámos a Esperança de um futuro melhor; nem a perdição deixaremos por herança porque nos apressamos a matar também os nossos herdeiros. 

Será o regresso ao caos. 

Não me considero um pessimista; também não sou seguramente um optimista delirante; mas com a lucidez que considero ter, o que vejo e ouço e leio deixa-me profundamente preocupado. Há um desnorte instalado. Os povos, aqui e ali cirurgicamente alienados, engrossam as levas de cordeiros para os matadouros, para os açougues. E recordando um dos cruelmente injustiçados, também me surpreendo muito mais com o silêncio dos justos do que com as vociferações dos vis e dos acéfalos. 

Já não tenho idade para ter medo, mas enquanto for vivo sentirei um profundo desgosto vendo ruir o sonho maior da instauração da dignidade da Vida. 

Termino com a transcrição da frase que li ou ouvi a uma actriz brasileira: “se o mundo é isto, parem o bonde, porque eu quero descer.” 


José-Augusto de Carvalho 
10 de Janeiro de 2019.
Alentejo * Portugal

08 - CIDADANIA * Sem pueris ingenuidades


NA PALAVRA É QUE VOU… 


Sem pueris ingenuidades 




Já não tenho idade para me surpreender facilmente. Sem pueris ingenuidades, aliás seriam inadequadas, deploro muito do que vejo em meu redor. E nada posso fazer, porque o mundo gira a seu bel-prazer, independentemente da minha concordância ou da minha discordância. Os mestres que tive sempre me ensinaram ser indispensável o conhecimento e o seu questionamento. Hoje, nesta época de informação ao segundo, o que mais vejo e ouço e leio é o primitivismo da banalidade, é o raciocínio elementar, é a prosápia convencida daqueles que encontraram aquela velha coisa que dá pelo nome de verdade. Não tenho a pretensão da sapiência, por isso mesmo me reduzo à celebrada frase atribuída a Sócrates --- eu só sei que nada sei. É verdade que sim, mas sempre adianto que não me considero tolo. Sustento que um efeito depende duma causa, que não há efeito sem causa, e por aí adiante. Mais sustento que a inércia não existe, logo a inércia que vamos vendo por aí não mais será do que o efeito de uma causa que no subsolo germina… 

Louvo os meus mestres, devo-lhes a possível lucidez que suponho ter e não lamento os desaires sofridos, resultantes dessa mesma lucidez. Nunca adoptei o cinismo, mas sempre entendi o porquê de duas frases vulgarmente usadas por alguns: às vezes, convém nos fazermos de tolos, 

e estoutra, mais vale cobarde vivo do que herói morto. Não arrisco qualquer juízo. Cada um sabe de si e responde por si. Eu não julgo ninguém, mas faço as minhas escolhas tal como os demais fazem as deles. 

As escolhas dos outros valem o que valem por elas mesmas. Se conflituam com as minhas, evidentemente que sustento as minhas escolhas e enfrento lealmente o debate que surgir. Aliás como toda a gente. 

O silêncio só é uma escolha quando agimos individualmente. Se inseridos num contexto mais amplo, o silencio que mantemos poderá ser lido como a inércia provocada, que mais não será do que o efeito de uma causa que se ignora ou talvez nem tanto… E aqui poderei ser apodado de especulador, mas há razões e não-razões para especular. E até posso adiantar que seria conveniente ponderarmos a possibilidade de algumas especulações serem mais da responsabilidade de quem é alvo delas do que de quem as tece. 

Aqui fica mais uma reflexão, uma entre tantas e tantas que cogito… 



José-Augusto de Carvalho 
9 de Janeiro de 2019. 
Alentejo * Portugal 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * O elogio do poeta


TEMPO DE SORTILÉGIO 


O elogio do poeta 





Poeta sem diploma que te valha 

nem estatuto que te recomende 

na feira franca do consumo espalha: 

um verso não se compra nem se vende. 



Que a tua voz ressoe como um grito 

e assombre ou incendeie a multidão: 

um verso nunca pode ser maldito 

se nele fala livre um coração. 



Rebelde, o verso nunca se conforma 

com o silêncio inerte da mortalha. 

Se amante, faz da vida a sua norma, 

que tão-somente o puro Amor lhe valha! 



E o verso seja enleio enamorado, 

quando, pela tardinha, o sol declina, 

ou seja, ao meio-dia, um sol irado, 

quando inclemente cega a tremulina… 



Ou seja, no fulgor da rebeldia, 

a mesa, que sem pão, protesta -- basta! 

Ou seja o rio, em louca correria, 

que além das margens cresce e tudo arrasta!… 



Que um verso seja um verso além da rima! 

Que além do metro e ritmo, seja tudo! 

Importa que o poeta se redima… 

…e a redimir-se nunca fique mudo! 





José-Augusto de Carvalho 
9 de Janeiro de 2019. 
Alentejo * Portugal

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * Na queda



TEMPO DE SORTILÉGIO 


Na queda 





Sem rede ou outra protecção --- a queda! 

No circo, o povo aplaude, delirante! 

O pão e o circo, em Roma, por bastante! 

A negação por si mesma leveda! 



Com Ceres, haja pão, vindima e vinho! 

Com Baco, venha, trágico, o delírio! 

Com César, haja arenas de martírio! 

Que a perdição se cumpra por caminho! 



Saturno, indiferente, o tempo mede. 

O livre arbítrio é doutra dimensão 

e condição, parcela doutra soma… 



O bárbaro não pode e fraco cede… 

Sem tempo, arenas, circo, vinho e pão 

o império glorificam --- Viva Roma! 







José-Augusto de Carvalho 
2 de Janeiro de 2019. 
Alentejo * Portugal 


terça-feira, 1 de janeiro de 2019

17 - POEMÁRIO * Coração desfeito


DO MAR E DE NÓS 


Coração desfeito 






No impulso de encontrar-me além do pátrio chão, 

soltei-me da raiz e mergulhei no rio. 

Senti-me a flutuar. Que assombro de evasão 

sem peias encontrar o cais do desafio! 



E na corrente fui! Inábil mas ousado, 

ganhei, no meu arrojo, as artes marinheiras. 

Além da barra, o céu no pélago espelhado 

e as ondas desmaiando em seduções matreiras… 



Tudo era novo, dum alvoroçado espanto! 

Também eu era novo e o mundo me chamava! 

E eu fui além, bebendo as lágrimas do pranto 

daquela que sozinha aqui no cais deixava… 



E fui… e trouxe o mundo inteiro no meu peito! 

No peito onde hoje bate um coração desfeito… 







José-Augusto de Carvalho 
31 de Dezembro de 2018. 
Alentejo * Portugal