Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

sexta-feira, 30 de março de 2018

02 - POESIA VIVA * Ecce Homo, sempre!


(TEMPO DE SORTILÉGIO) 
Ecce Homo, sempre! 




Desfeitas as entranhas, sangue e pus,
o que restou de mim, aos pés da cruz!

Os fariseus não brincam em serviço!
Famélicos, em bárbaro delírio,
fizeram dos meus restos um feitiço,
quiseram-me a sofrer mais um martírio...

E se morri, o tempo não passou!
De mim, persiste ainda a luz que sonha...
Mãos dadas com o fel que me imolou
nas aras da ignomínia e da vergonha...

O tempo exalça ainda a impunidade
e é débil toda a voz que dá o alarme!
Se em mim persiste o grito da verdade...
...também a ira de crucificar-me!


José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, Páscoa de 2002.

sábado, 24 de março de 2018

04 - FANTASMAS DA MEMÓRIA * A fisga


(Histórias de um tempo perdido para sempre) 

A fisga 



O Lourenço jogava ao berlinde e ao pião, como todos os rapazinhos da sua idade, mas não usava fisga. Um dia, quando regressavam da Feira anual, um seu colega de Escola, o Anastácio, quis saber:

--- Lourenço, por que não usas fisga?

A resposta foi seca:

--- Não uso porque não quero.

Anastácio não aceitando a resposta como esclarecedora, insistiu provocante:

--- Tu não sabes atirar, é por isso que não tens uma fisga.

Lourenço olhou interrogativamente o colega e precisou:

--- Eu não disse que não tenho uma fisga, eu disse que não uso fisga.

Anastácio ficou calado, perplexo. E Lourenço, friamente, clarificou:

--- Tu perguntaste por que não uso fisga e não se eu tenho uma fisga.

Anastácio compreendendo o ardil em que caíra, tentou sair dele com um desafio:

--- Se tens fisga, sabes atirar como nós sabemos…

Lourenço acenou que sim com um movimento de cabeça.

Nesta altura da conversa todos pararam na expectativa do que se adivinhava. E o que se adivinhava chegou quando Anastácio lançou o repto:

--- Se sabes atirar, vamos ver qual de nós dois tem melhor pontaria.

Lourenço encolheu os ombros, com indiferença.

Anastácio concretizou o repto:

--- À melhor de cinco fisgadas. Quem perder tem direito a desforra. Se houver empate, uma terceira série de cinco fisgadas decide o vencedor.

Todos concordaram à excepção de Lourenço que de novo encolheu os ombros num sinal evidente de indiferença.

Foi fácil a escolha de um alvo --- uma rolha de cortiça colocada numa das muitas fendas de um muro não rebocado de uma horta. Os atiradores alvejariam a rolha a vinte passos de distância.

Lourenço propôs usar a fisga de Anastácio para ficarem ambos em total igualdade. A proposta foi aceite. Por sorteio, Anastácio seria o primeiro a alvejar a rolha.

Pouco demorou a recolha de projécteis, pequenas pedras escolhidas no chão, arredondadas e de dimensão um pouco inferior â de um berlinde.

Anastácio era conhecido de todos como um bom atirador de fisga; Lourenço era para eles um grande ponto de interrogação; não tinham memória de o ter visto com uma fisga na mão.

Anastácio cumpriu a primeira série de cinco fisgadas. Acertou quatro vezes. Era um bom resultado.

Todos os olhares se concentraram curiosos em Lourenço. Que iria suceder?

Lourenço acertou as primeiras quatro fisgadas e olhando fixamente Anastácio disse:

--- Pronto, empatámos.

Surpreendidos, todos disseram:

--- Lourenço, ainda te falta uma fisgada…

Lourenço encolheu os ombros e justificou:

--- Pode ser, mas eu devo errar a rolha, não vale a pena arriscar. Está bom assim, empatámos.

Anastácio ficou apreensivo. Afinal, Lourenço o surpreendera. Era um bom atirador de fisga e agora até recusava a possibilidade de vencer; mas a sua ânsia de superação prevaleceu e aprestou-se para a segunda série de fisgadas.

Uma dúvida assaltou os demais colegas: seria que Lourenço não queria perder mas também não queria ganhar para não desgostar Anastácio?

Os dois atiradores ocuparam os seus lugares para a segunda série de fisgadas.

Anastácio repetiu o resultado. Errou de novo a primeira fisgada e acertou as quatro restantes.

Havia ansiedade evidente em Anastácio e um mal-estar contido nos demais.

Lourenço atirou certeiramente quatro vezes e entregou a fisga a Anastácio.

--- Toma lá a tua fisga. Já chega de fisgadas, ficámos empatados.

Todos ficaram calados, excepto Anastácio, que protestou:

--- Quem desiste, perde!

Calados, os colegas adivinhavam situação desagradável. Lourenço sossegou-os ao se dirigir ao adversário com um sorriso:

--- Está bem, Anastácio, tu ganhaste, és um bom atirador. Podes levar a taça.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 24 de Março de 2018.

terça-feira, 20 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Maré-cheia!



O MEU RIMANCEIRO 


Maré-cheia! 

Marielle 



A noite acende as luzes da ansiedade. 

O medo tranca portas e janelas. 

O grito emudeceu das sentinelas. 

As rondas não patrulham a cidade. 



Galopam pelas ruas da cidade 

sem lei os pesadelos assassinos, 

assombração dos leitos dos meninos. 

suplício de letal impunidade. 



Sofrem e morrem sem saber por quê 

as indefesas gentes da cidade. 

Que cívico poder da Autoridade? 

E que Ordem? Que progresso? Ninguém vê? 



Por quanto tempo mais a impunidade? 

De quantas vítimas carece a Ordem 

para se impor à sanha da desordem, 

para haver paz e vida na cidade? 



Caíste agora tu, mulher e voz 

dos ofendidos todos da cidade. 

Morreu contigo o verbo da verdade! 

Sem ti, ficámos órfãos e mais sós! 



Inunda a ruas todas da cidade 

a dádiva sangrenta --- maré-cheia! 

E um povo adulto indómito semeia 

searas de amanhã e liberdade! 



Há sempre páscoa em tempo de cordeiros 

e sacrifícios velhos de impiedade. 

Que a paz floresça livre na cidade! 

Banidos sejam cruzes e madeiros! 







José-Augusto de Carvalho 

Alentejo, 20 de Março de 2018.

segunda-feira, 19 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Da barbárie...




O MEU RIMANCEIRO 

(Que viva o cordel!) 


Da barbárie... 




Atroam as trombetas e os tambores. 

Solícitos, com destemor, acorrem 

os bélicos actores: 

uns matam, outros morrem. 



Imposta a causa, agora definidos 

os trágicos efeitos: 

os insepultos corpos dos vencidos 

e o júbilo em desfile dos eleitos. 



Nas torres de menagem dos castelos 

hasteiam-se os pendões de vivas cores: 

são verdes e vermelhos e amarelos. 

Ufanos, rufam-rufam os tambores. 



A noite cai, alheia ao desvario. 

Desdobra-se um silêncio de mortalha. 

Um mocho lança um agoirento pio 

que sobre os mortos lúgubre se espalha. 



Não mais “honra aos vencidos”. 

Palavras velhas de idos estertores 

são símbolos banidos. 

Que glória aos vencedores? 



Se um justo não perdoa, mas aplica 

as normas da Justeza e da razão, 

merece punição quem edifica 

um ser e estar da vida em negação. 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 19 de Março de 2018.

segunda-feira, 12 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * O boato



O MEU RIMANCEIRO 

(Que viva o cordel!) 


O boato 





Diz-se que disse… Quem disse? 

É suspeita ou é verdade? 

Se fica na obscuridade 

o autor que se diz que disse, 

qual é a veracidade 

deste diz-se que alguém disse? 



Tudo quanto se propala 

ou o sustenta o rigor 

ou a suspeita se instala 

como eco perturbador 

que sem provas assinala 

agente difamador 



Quanto do que é suspeitado 

é intriga ou é despeito? 

Ninguém só porque é suspeito 

em Juízo é condenado 

Apenas o que é provado 

em Juízo é de Direito. 



Será réu de alta traição 

ao primado da justeza 

quem ousar a subversão 

e amordaçar a defesa 

a interesses de facção 

ou de ardilosa torpeza. 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 12 de Março de 2018. 


sábado, 10 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * De viagem…



O MEU RIMANCEIRO 

(Que viva o cordel!) 


De viagem… 






Vai o tempo de longada. 

O velho Cronos assume 

a rota determinada, 

haja aplauso, haja queixume. 



Tão velho como a velhice, 

cumpre a rota decisiva, 

como se ninguém ouvisse 

dos milhões da comitiva. 



É o chefe que se aferra 

à condição que detém. 

Quem não quer, que fique em terra! 

Não se obriga aqui ninguém! 



Todo o tirano é assim: 

quem não lhe aceita as vontades 

ou tem a morte por fim 

ou definha atrás das grades… 



Fez escola esta conduta: 

disse um, o Estado sou eu; 

outros há de forma astuta 

o comum fazendo seu. 



Daqui terá derivado, 

já milenar, todo o mal, 

desde os circos do Passado 

ao presente carnaval. 



Haja pão, haja folia, 

tudo o mais logo se vê! 

Viva quem assim se adia, 

morra sem saber por quê!... 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 9 de Março de 2018. 


segunda-feira, 5 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Das sentenças...



O MEU RIMANCEIRO 

(Que viva o Cordel!) 


Das sentenças… 

(Magister dixit) 





É boa a diversidade. 

Poder escolher é bom, 

da cor à intensidade 

dos tons, da luz ou do som. 



Se de escolhas é a Vida, 

pese ou não a qualidade 

da que for a preferida, 

que viva a diversidade! 



Cada escolha tem um preço. 

Tudo se paga na Vida! 

Até a Vida do avesso 

pode ter sido escolhida. 



No início da caminhada, 

todo o caminho é incerto; 

saberemos à chegada 

o que deu errado ou certo. 



Antecipar as certezas 

é querer a supressão 

de incertezas e surpresas 

de insuspeita condição. 



Se ninguém foi ao futuro, 

que certezas pode haver 

dum tempo são e maduro 

que queremos conhecer? 



Pedra a pedra se erguem casas 

que serão o nosso lar, 

tal como só quem tem asas 

ousa seguro voar 




José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 5 de Março de 2018.

sábado, 3 de março de 2018

03 - O MEU RIMANCEIRO * Pão salgado



O MEU RIMANCEIRO 

(Que viva o Cordel!) 


Pão salgado 





É assim o dia a dia: 

todos iguais, nada muda! 

É uma monotonia 

ou é um “Deus nos acuda”? 



Não sei bem por que razão 

se espera que os outros tragam 

a mezinha ou a unção 

para os males que nos chagam… 



Esperar um salvador 

é do domínio da crença, 

mas viver, seja onde for, 

a nossa acção não dispensa. 



Quem quer isto ou quer aquilo, 

lute para o conquistar; 

ficando alheio e tranquilo, 

não tem por que protestar? 



Se alguém não fizer por mim 

o que por mim nem eu faço, 

como posso achar ruim 

sofrer o mau por que passo? 



Só quem come o pão suado 

sabe o gosto que o pão tem! 

Pão pelo suor salgado 

nunca fez mal a ninguém. 





José-Augusto de Carvalho 
Alentejo, 2 de Março de 2018.