Nas estradas e encruzilhadas da vida, liberto das roupagens da vaidade e da jactância, tento merecer esta minha condição de ser vivo.

sábado, 24 de março de 2018

04 - FANTASMAS DA MEMÓRIA * A fisga


(Histórias de um tempo perdido para sempre) 

A fisga 



O Lourenço jogava ao berlinde e ao pião, como todos os rapazinhos da sua idade, mas não usava fisga. Um dia, quando regressavam da Feira anual, um seu colega de Escola, o Anastácio, quis saber:

--- Lourenço, por que não usas fisga?

A resposta foi seca:

--- Não uso porque não quero.

Anastácio não aceitando a resposta como esclarecedora, insistiu provocante:

--- Tu não sabes atirar, é por isso que não tens uma fisga.

Lourenço olhou interrogativamente o colega e precisou:

--- Eu não disse que não tenho uma fisga, eu disse que não uso fisga.

Anastácio ficou calado, perplexo. E Lourenço, friamente, clarificou:

--- Tu perguntaste por que não uso fisga e não se eu tenho uma fisga.

Anastácio compreendendo o ardil em que caíra, tentou sair dele com um desafio:

--- Se tens fisga, sabes atirar como nós sabemos…

Lourenço acenou que sim com um movimento de cabeça.

Nesta altura da conversa todos pararam na expectativa do que se adivinhava. E o que se adivinhava chegou quando Anastácio lançou o repto:

--- Se sabes atirar, vamos ver qual de nós dois tem melhor pontaria.

Lourenço encolheu os ombros, com indiferença.

Anastácio concretizou o repto:

--- À melhor de cinco fisgadas. Quem perder tem direito a desforra. Se houver empate, uma terceira série de cinco fisgadas decide o vencedor.

Todos concordaram à excepção de Lourenço que de novo encolheu os ombros num sinal evidente de indiferença.

Foi fácil a escolha de um alvo --- uma rolha de cortiça colocada numa das muitas fendas de um muro não rebocado de uma horta. Os atiradores alvejariam a rolha a vinte passos de distância.

Lourenço propôs usar a fisga de Anastácio para ficarem ambos em total igualdade. A proposta foi aceite. Por sorteio, Anastácio seria o primeiro a alvejar a rolha.

Pouco demorou a recolha de projécteis, pequenas pedras escolhidas no chão, arredondadas e de dimensão um pouco inferior â de um berlinde.

Anastácio era conhecido de todos como um bom atirador de fisga; Lourenço era para eles um grande ponto de interrogação; não tinham memória de o ter visto com uma fisga na mão.

Anastácio cumpriu a primeira série de cinco fisgadas. Acertou quatro vezes. Era um bom resultado.

Todos os olhares se concentraram curiosos em Lourenço. Que iria suceder?

Lourenço acertou as primeiras quatro fisgadas e olhando fixamente Anastácio disse:

--- Pronto, empatámos.

Surpreendidos, todos disseram:

--- Lourenço, ainda te falta uma fisgada…

Lourenço encolheu os ombros e justificou:

--- Pode ser, mas eu devo errar a rolha, não vale a pena arriscar. Está bom assim, empatámos.

Anastácio ficou apreensivo. Afinal, Lourenço o surpreendera. Era um bom atirador de fisga e agora até recusava a possibilidade de vencer; mas a sua ânsia de superação prevaleceu e aprestou-se para a segunda série de fisgadas.

Uma dúvida assaltou os demais colegas: seria que Lourenço não queria perder mas também não queria ganhar para não desgostar Anastácio?

Os dois atiradores ocuparam os seus lugares para a segunda série de fisgadas.

Anastácio repetiu o resultado. Errou de novo a primeira fisgada e acertou as quatro restantes.

Havia ansiedade evidente em Anastácio e um mal-estar contido nos demais.

Lourenço atirou certeiramente quatro vezes e entregou a fisga a Anastácio.

--- Toma lá a tua fisga. Já chega de fisgadas, ficámos empatados.

Todos ficaram calados, excepto Anastácio, que protestou:

--- Quem desiste, perde!

Calados, os colegas adivinhavam situação desagradável. Lourenço sossegou-os ao se dirigir ao adversário com um sorriso:

--- Está bem, Anastácio, tu ganhaste, és um bom atirador. Podes levar a taça.



José-Augusto de Carvalho
Alentejo, 24 de Março de 2018.

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